Maomé e o Islamismo
Ele criou uma nação fundamentada em direitos
trabalhistas, juros baixos e livre concorrência de mercado. Tinha
uma esposa que ganhava mais do que ele e emancipou as mulheres quando
assumiu o poder. Conheça a face realmente oculta do criador do
islamismo.
Texto: Alexandre Versignassi | Design: Fabrício Miranda |
Ilustrações: Stevan Silveira | Ilustração da abertura: Sattu
A maior dor de cabeça dos árabes que controlavam Meca, a cidade
sagrada, era um certo Muhammad ibn Abdallah – Maomé, em
português. O plano era acabar com ele de uma vez. Aquele “poeta
insano”, como eles diziam, tinha virado uma ameaça. Ele vinha
angariando partidários fervorosos. Agora era questão de tempo até
que o poeta, que se dizia profeta, assumisse o poder na cidade.
“Maomé deve morrer” era a ordem. Mas não era simples
matar um político em ascendência. Para evitar que a culpa recaísse
sobre um assassino específico, e dificultar retaliações, eles
bolaram um crime perfeito: cada um dos líderes da cidade deveria
designar “um soldado forte e bem-nascido” de seu clã. O
grupo invadiria a casa de Maomé no meio da madrugada, e cada um
desferiria sua própria punhalada. Todos matariam o profeta, diluindo
a culpa entre os membros do consórcio de assassinos.
Não deu certo, claro, se não este texto não estaria sendo
escrito. E não só porque se trata de um artigo sobre a vida dele.
Mas porque, sem a religião que ele criou, o mundo seria um lugar bem
diferente. E bem pior, como vamos ver mais adiante. Por outro lado, é
óbvio: o que motivou este texto foi a violência dos extremistas
islâmicos, uma minoria estridente que comete crimes em nome de sua
religião, sem saber que outro grande delito que está perpetrando é
contra o próprio islamismo e, mais ainda, contra a imagem de Maomé,
um homem que trabalhou pela civilização, não pela barbárie. Vamos
conhecê-lo melhor agora.
O embrião
Meca já era sagrada quando o bebê Maomé nasceu ali,
no ano de 570. Bem sagrada: recebia peregrinos de todos os cantos da
Península Arábica. Tudo por causa de um meteorito: a Pedra Negra,
que caiu nas redondezas da cidade sabe-se lá quando e acabou virando
um objeto de culto.
Em algum momento da história, que nunca foi registrado, os árabes
colocaram muros em volta da pedra, cobriram e pronto: a casinha virou
um santuário, a Caaba – o Cubo. Junto dela, colocaram 360
deuses, na forma de estatuetas. Um para cada dia do ano – que
eles pensavam ter 360 dias. O ritual ali era dar sete voltinhas em
torno da Caaba. Provavelmente porque esse é o número de dias de
cada fase da Lua. Os deuses, afinal, podiam não ser astronautas, mas
eram astros. A Lua era Hubal, uma divindade que ajudava os humanos a
prever o futuro. Vênus, o planeta, era Uzza, a deusa do amor. Acima
de todos, na sala da presidência celestial, sentava-se um deus tão
poderoso que nem tinha nome. Era apenas “o deus”: al-Ilah. E do
mesmo jeito que “vossa mercê” virou “você”, al-Illah
virou Allah.
E Allah também era Javé. Os judeus tinham escrito a Bíblia mil
anos antes. Ela já era o texto mais conhecido do mundo. E a ideia
central ali, você sabe, era a de que Javé, o Deus do “d” maiúsculo,
tinha criado o mundo e feito uma aliança com um homem chamado
Abraão, o patriarca dos judeus. Graças à forte presença de
comunidades judaicas na Arábia, essa ideia estava tão impregnada
ali que os próprios árabes se viam como um povo quase bíblico.
Acreditavam que também eram descendentes de Abraão, o homem que
falava com Deus. A diferença é que, enquanto os judeus descenderiam
de um dos filhos do profeta, Isaac, os árabes viriam do primogênito
de Abraão: Ismael, o filho que ele teve com a escrava da família.
Fazia sentido, já que a Bíblia dizia que Ismael foi mesmo morar nas
bandas da Arábia, ainda que não dê mais detalhes além de dizer
que ele “se tornou um bom atirador de flechas e arranjou uma mulher
egípcia”.
Só faltou combinar com os árabes que Javé era o único deus. Na
cabeça deles, o deus de Abraão convivia com a deusa do amor, o deus
da lua, a deusa do destino. E atendia pelo nome de “O deus”:
Allah. A verdade é que cabia de tudo na mente do árabe típico
daqueles tempos – igual cabe na do brasileiro típico destes
tempos, que sincretiza catolicismo com umbanda e espiritismo sem
problema nenhum. Havia até quem fosse à Caaba prestar culto a Jesus
Cristo, uma divindade que vinha ganhando terreno naquele panteão. Em
suma, Meca era um tabule de crenças. E foi em meio a esse carnaval
religioso que nasceria Maomé, o filho do seu Abdallah e da dona
Amina.
O menino
Abdallah, rapaz boa pinta, estava indo para a casa da noiva. Não
era um dia qualquer: logo mais, aconteceria a noite de núpcias dele
com a jovem Amina. Mas no meio do caminho apareceu uma mulher. Uma
estranha interceptou o futuro pai de Maomé na rua e o
convidou para conhecer sua cama. Uau. Mas ele recusou educadamente e
seguiu seu caminho rumo a outra cama, aquela onde consumaria seu
casamento.
Mas homem você sabe como é. Abdallah cruzou com a estranha no
dia seguinte e perguntou se o convite ainda estava de pé. Não
estava. Porque mulher, bom, você sabe como é: “Ontem você tinha
um brilho nos olhos”, ela disse. “E hoje não tem mais. Não
quero.”
O tal brilho não era uma figura de linguagem. Segundo a tradição
islâmica de onde vem essa história, os olhos de Abdullah realmente
emitiam luz. E por um motivo claro: naquela noite, ele e Amina
conceberiam o embrião deMaomé. O brilho era uma manifestação da
semente do Profeta, que estava prestes a sair do pai e ser plantada
no útero de sua mãe. Claro que esse episódio da literatura
islâmica é provavelmente tão factual quanto a história dos Reis
Magos na literatura cristã. É só uma lenda composta para dar um
caráter sobrenatural ao nascimento de Maomé, do mesmo jeito
que a historinha da Estrela de Belém faz do parto de Jesus um
acontecimento transcendente. Com ou sem luz nos olhos, o fato é que
Abdallah e Amina foram mesmo os pais de Maomé. Mas não por
muito tempo.
O pai nem viu o filho nascer. Morreu enquanto Amina ainda estava
grávida. O casal já vivia apertado. Os bens de Addallah somavam
cinco camelos e algumas ovelhas – o que fazia dele um membro
da “classe média baixa”, caso existisse um IBGE em Meca. Agora,
com ele morto, as perspectivas para Amina eram trágicas. Mas ela
segurou a barra. Teve o filho sem problemas e propiciou uma infância
saudável ao menino, com direito até a um “intercâmbio” com
uma família de beduínos para aprender cedo as agruras do deserto
– coisa que toda criança árabe tinha de fazer na época para
“crescer forte”. Mas Amina não teve tanto tempo para curtir o
filho: morreu antes de ele completar 7 anos.
Agora Maomé tinha 8 anos e um destino: virar escravo. Esse
era o fado da maior parte dos órfãos da época.
Os dentes de leite do garoro mal tinham caído e ele já era órfão
de pai e de mãe. Então foi morar com o avô. E o avô morreu
também. Agora Maomé tinha 8 anos e um destino: virar escravo.
Esse era o fado da maior parte dos órfãos da época. Sem uma
família para ajudar, a única saída era trabalhar em troca de
(pouca) comida pelo resto da vida. Mas Maomé escapou dessa
sina graças a um tio, Abu Talib, que era irmão do falecido
Abdullah. O homem teve pena do sobrinho e decidiu adotá-lo. E o
garoto finalmente ganhava uma família completa.
Mais do que isso, na verdade. Abu Talib era um xeique, um chefe de
clã. Só para situar: estamos na Arábia pré-islâmica, uma terra
sem rei, onde o que vale é a lei tribal. O xeique é o cacique, mas
não manda sozinho. Para cuidar dos cultos religiosos, você tem o
kahin, sujeito que cuida dos cultos e baixa o santo, servindo de
porta voz para os deuses da tribo – deuses que gostavam de
falar em rimas, já que recitar poesia nas celebrações era a
especialidade dos kahins. No Poder Judiciário, você tem o hakam, um
juiz de pequenas causas. O trabalho do hakam, aliás, não era dos
mais complicados, porque a ética que reinava ali era a do olho por
olho. A lei da retribuição. Quebrou o nariz de alguém? Seus dias
de simetria facial acabaram. Matou? Morreu.
Mas esse sistema tribal estava entrando em crise. Àquela altura,
a vida nômade, com tribos de pastores vagando em busca de pasto e só
se cruzando de vez em quando, estava com os dias contados. O comércio
já era forte o bastante para sustentar centros urbanos. E o normal
agora era várias tribos ocuparem a mesma cidade. Só tinha um
problema: as leis de cada tribo só valiam dentro de cada tribo. Se
você matasse alguém de fora, problema do morto. Era como se um
morador de Ipanema tivesse carta branca para quebrar narizes no
Leblon. Não tinha como dar certo.
Tanto não tinha que o único caminho viável foi a formação de
“megatribos”. Vários clãs foram se unindo, via casamentos
arranjados, que providenciavam laços de sague. Depois de algumas
décadas, vinha o resultado: uma megatribo, que acabava subjugando as
menores: podiam quebrar narizes à vontade. Sem medo de punição.
Em Meca, a megatribo era a dos Quraysh. Eles controlavam o
comércio e as finanças da cidade. Os peregrinos da Caaba, por
exemplo, eram uma fonte de renda garantida para os mecanos:
propiciavam feiras e mercados vibrantes em volta do santuário. Mas,
se você quisesse fazer parte da festa, abrindo uma barraquinha numa
dessas feiras e mercados, não tinha jeito: teria que pagar impostos
gordos para os líderes dos Quraysh.
Isso concentrava a renda. Então, se você precisasse de um
cascalho para abrir sua barraquinha, teria que pedir emprestado para
os Quraysh mesmo. E eles cobravam juros extorsivos. Não porque
fossem perversos, ou burros (juro alto demais = inadimplência = mau
negócio para o credor). Eles cobravam juro de agiota porque, quanto
mais calotes rolassem, melhor. Explico. É que a garantia mais comum
da época para casos de calote era particularmente interessante para
o credor: pessoas. Você pedia um empréstimo e deixava um filho como
garantia, ou você mesmo. Se você não pagasse, o credor ganhava um
escravo. Num tempo sem máquinas, em que o trabalho braçal valia bem
mais do que hoje, ganhar escravos valia mais a pena do que receber os
empréstimos de volta. E, se a garantia fosse uma esposa ou uma
filha, melhor ainda: ela acabaria engrossando o harém do credor.
Foi nesse cenário que Maomé cresceu. Mas não só
nesse. É que o tio Abu Talib, além de Xeique e bem relacionado com
os Quraysh, era um exportador, dono de caravanas de camelos que
transportavam alimentos, especiarias e objetos preciosos deserto
adentro. Ainda criança, Maomé começou a participar
dessas viagens. E foi ótimo: o menino conheceu comunidades cristãs
e judaicas bem mais a fundo do que se tivesse passado a vida em Meca.
O fato de ele ter se inteirado bem sobre as duas religiões
monoteístas ajudou lá na frente, quando ele criaria a terceira. Mas
isso talvez nunca tivesse acontecido se Maomé não
cruzasse o caminho de uma certa mulher, 15 anos mais velha que ele. A
mulher que dominaria seu coração. E salvaria sua mente.
O homem
(Estevan Silveira/Superinteressante)
Maomé estava com 25 anos e sem grandes expectativas. Ainda
não tinha um negócio próprio. Dependia da boa vontade do tio para
ter casa e emprego. Pelo menos ele já tinha feito uma bela reputação
na arte que Henry Ford um dia chamaria de “comprar como se fosse
lixo, vender como se fosse ouro”. Era um baita negociante. E logo a
fama do rapaz lhe renderia frutos.
Nessa época, ele teve a sorte de ser contratado por alguém bem
mais rico que seu tio. Alguém poderoso, respeitado e que, contra
todas as normas sociais da época, cometia o disparate de não ser
homem: Khadija. Num tempo em que mulher era propriedade, e nem podia
herdar bens se o marido morresse, Khadija era uma mulher emancipada.
Uma self-made woman de 40 anos, dona de caravanas extremamente
lucrativas, e que, mesmo não sendo mais nenhuma menininha, estava
entre as mulheres mais cobiçadas da cidade. Bom, Khadija agora
precisava de alguém para chefiar uma caravana para a Síria, mil
quilômetros ao norte de Meca. Ela tinha ouvido falar muito bem
de Maomé, então convidou o rapaz. Foi uma aposta
vencedora: Maomé voltou da Síria com o dobro dos lucros
que ela esperava. Aí foi paixão à segunda vista: ela ficou tão
encantada que pediu o rapaz em casamento. Consta que ele não pensou
duas vezes.
Agora
Maomé estava
por cima da carne-seca. Ao assumir o controle das caravanas de
Khadija, finalmente conseguiu ter seu próprio (e grande) negócio.
Virou um comerciante reverenciado até pela elite. Nessa época, seu
melhor amigo passou a ser o próspero Abu Bakr, um Quraysh também
dono de caravanas. E Maomé ganhou a honra de recolocar a
Pedra Negra na Caaba, depois de uma reforma que os líderes da cidade
tinham feito no santuário.
Mas ele não se sentia confortável com a situação. Se por um
lado ele lucrava com o sistema de Meca, já que tinha se tornado um
comerciante próspero, por outro, ele simplesmente não engolia a
ditadura Quraysh. Os textos islâmicos sobre a vida do Profeta, que
começaram a ser escritos enquanto ele estava vivo, reiteram
que Maomé não suportava ver tanta gente se tornando
escrava por não conseguir pagar dívidas. Ele também achava absurda
a ideia de a elite de Meca ser imune à lei da retribuição. Mas não
protestava. E ainda tinha um comportamento contraditório: apesar de
fazer doações frequentes aos mais pobres e ser contra o
escravagismo, tinha seu próprio escravo, Zayd.
Alem das doações, outra coisa que ele fazia para aplacar a
consciência era sair para meditar sozinho nas montanhas em volta da
cidade. E foi num desses retiros, quando já tinha 40 anos,
que Maomé teve a maior de todas as experiências, segundo
a liturgia islâmica.
Ele sentou numa caverna para meditar, quando ouviu uma voz, que
lhe surgiu na cabeça. Uma voz autoritária, que dizia:
– Recita!
– Recitar o quê?, perguntou.
– Recita!!
Então Maomé recitou, mesmo sem saber o que iria
recitar. Entrou numa espécie de transe e sentiu as palavras fluírem:
“Recita, em nome do seu Senhor que criou/ Criou a humanidade a
partir de um coágulo de sangue/ Recita, que seu Senhor é generoso/
Aquele que ensinou pela escrita/ Ensinou à humanidade o que ela não
sabia”.
Não era um texto duro e seco, como está aqui. Em árabe, são
versos gostosos de ouvir, feitos para cantar, já que têm uma
métrica sofisticada e rimam. Os dois primeiros, por exemplo, fecham
com palavras terminadas em “laq” (pronuncia-se “láco”).
Os três últimos, com palavras que acabam em “am”. Poesia, em
suma. Ao estilo dos kahins.
Essa foi a primeira das várias recitações que Maomé faria
nos 23 anos seguintes. E que dariam origem ao Alcorão (literalmente,
“A Recitação”). Mas, segundo a tradição islâmica, não foi
fácil para ele. Maomé ficou atordoado com a experiência
de ver os versos saírem pela sua boca sem que ele soubesse o que
estava acontecendo. Ele suava, tremia. E saiu da caverna direto para
casa. Só relaxou depois de ser ninado nos braços da mulher.
“Khadija…”, ele suspirou, mais calmo. “Acho que fiquei
louco.” Hoje, 1,6 bilhão de pessoas discorda dessa afirmação.
Mas naquele dia, bastava Khadija.
Ela confortou o marido. Depois, para que Maomé entendesse
melhor o que tinha acontecido com ele na caverna, decidiu levá-lo a
um especialista, digamos assim. Era Waraqa, um primo cristão de
Khadija, versado nas escrituras judaicas e nos Evangelhos. E o
diagnóstico foi imediato: aquelas eram palavras de Deus, Waraqa
disse. O Criador estava se manifestando pela boca de Maomé. Ele
era seu Mensageiro. Seu Profeta. E as mensagens tinham um intuito:
deixar claro para o povo árabe que só existia um Deus. O Deus:
Allah. Todas as outras divindades seriam ilusórias.
Dali em diante, Maomé passaria a pregar o monoteísmo
vorazmente. Ia até a Caaba e discursava para os politeístas. Além
de vociferar que os deuses deles não existiam, deixava claro que ele
próprio era uma parte da história entre Deus e os homens. Allah,
ele dizia, contou com vários profetas: Adão, Noé, Abraão, Moisés,
Davi, Jesus. E agora tinha mais um, ali, diante deles: Maomé.
Na prática, a religião que Maomé criava naquele
momento era um reflexo do próprio caldo cultural de Meca: tinha um
pouco de cristianismo, muito judaísmo e um belo tempero árabe, com
a poesia que remetia à cultura ancestral dos kahin. Só
que Maomé tinha muito mais do que poesia para entregar.
Foi aí que começaram os seus problemas. E sua ascensão.
O profeta
(Estevan Silveira/Superinteressante)
O Maomé resignado, que tentava aplacar a consciência
fazendo caridade e isolando-se nas montanhas, estava morto. Agora
nascia outro homem: o Profeta vivo, que peitava os Quraysh sem medo,
descendo a lenha na cobrança de juros e, heresia máxima, pedindo a
libertação dos escravos. Começou libertando o seu, diga-se.
Mesmo com esse discurso, Maomé angariou seguidores
entre os homens ricos de Meca. Provavelmente pela beleza das
recitações, muitos realmente o viam como um novo Abraão, um novo
Moisés. A começar por seu amigo Abu Bakr, o comerciante Quraish.
Seu primeiro ato como seguidor de Maomé, inclusive, foi gastar
uma fortuna comprando escravos de seus colegas comerciantes para
libertá-los.
Some tudo isso ao fato de que a própria mensagem monoteísta
de Maométambém tinha um potencial destrutivo: se aquele homem
continuasse convencendo gente na Caaba de que os deuses ali dentro
eram de mentira, os peregrinos que se convencessem poderiam não
voltar mais. Péssimo negócio para os Quraysh, que controlavam o
comércio em torno do santuário. Pois é. Tinha chegado a hora de
tomar uma providência contra o recitador.
Mas não seria fácil, porque o número de seguidores dele só
crescia. No começo, eram só Abu Bakr, Zayd, seu escravo alforriado,
Khadija, claro, e o menino Ali, de 13 anos – um primo
de Maomé. Mas agora era diferente. Ele somava centenas de fiés.
Além disso, seu tio Abu Talib era próximo demais dos Quraysh. Isso
ajudava a manter as espadas deles longe do pescoço deMaomé. Mas não
por muito tempo.
Quando Maomé tinha 50 anos, no ano de 620, Abu Talib
morreu, deixando o caminho mais livre para os Quraysh. E pior ainda:
Khadija também faleceu, aos 65. Sem suas duas maiores referências
na vida, e ciente de que o pior se avizinhava, Maomé começou
a tecer um plano para deixar Meca, mas sem largar seus seguidores.
Líderes de outra cidade, Medina*, tinham convidadoMaomé para
servir como haran, julgando uma disputa interna entre os clãs
locais. O Profeta, então, orientou seus seguidores a se mudar para
Medina, 300 quilômetros ao norte, sem alarde, para não chamar a
atenção. Mas logo que os Quraysh perceberam o movimento decidiram
agir. O temor agora era que Maomé estivesse formando um
exército.
Foi aí que, em setembro de 622, decidiram matá-lo, lançando mão
daqueles soldados “fortes e bem-nascidos”. Mas os cães de
aluguel dos Quraysh tiveram uma surpresa. Quando arrombaram a casa do
Profeta, quem estava na cama era seu primo Ali. Maomé tinha
acabado de fugir para Medina, junto com Abu Bakr. Ali, poupado, logo
mais se juntaria aos dois.
Esse dia da fuga se tornou tão importante para o islamismo que o
ano de 622 ficaria marcado para sempre. Tornaria-se o ano 1 da nova
religião. O ano 1 d.H. (depois da Héjira, “Fuga”, em árabe). E
isso não aconteceria simplesmente porque o Profeta escapou da morte.
Mas porque foi em Medina que Maomé fez sua maior obra:
criou sua própria civilização.
Maomé agora era xeique. Longe de Meca, seus seguidores
formavam uma tribo de fato: a Ummah (“comunidade”). Uma tribo que
não era unida por laços de sangue, mas por uma ideologia. Ideologia
que Maomé logo tiraria do mundo das ideias.
Uma de suas primeiras medidas no campo das coisas práticas foi
baixar a Selic. Ou quase isso. O Profeta achava que os juros
extorsivos estavam no cerne dos problemas de Meca, certo? Então ele
criou um BNDES em Medina: os membros da Ummah concediam empréstimo a
juro zero para outros “afiliados”.
Outro problema que ele via em Meca era o monopólio dos Quraysh no
comércio. Medina também tinha uma tribo que dominava o comércio, a
Banu Qaynuca, de origem judaica. Ninguém podia vender nada em Medina
sem pagar uma taxa a eles.
Maomé acabou com isso. Não na pancada, mas criando uma
feira concorrente, que não cobrava taxa nenhuma. Nisso, ele quebrou
o monopólio e forçou uma baixada nos preços. Capitalismo de raiz.
De raiz mesmo: a Ummah abastecia seus mercados emboscando caravanas
nos arredores de Meca.
Os saques também alimentavam outra novidade: um Bolsa Família.
Todo membro da Ummah deveria pagar um imposto de acordo com suas
posses, o zakat. E o dinheiro ia para seguidores mais pobres, que nem
tinham como pagar imposto nenhum. Zakat significa “purificação”.
Ou seja, o imposto tinha um sentido religioso: os mais ricos
“purificavam-se” ao doar sistematicamente uma porcentagem
dos seus ganhos. Mas vale lembrar: a religião era tão
intrincada com todo o resto da vida social que nem havia uma palavra
para “religião”.
E ainda houve as reformas jurídicas. A lei principal continuava
sendo o olho por olho, mas Maomé introduziu uma mudança
fundamental ali. “A retribuição por uma injúria é uma injúria
igual”, diz o Alcorão, refletindo as leis tribais da Arábia. Mas
tinha um complemento interessante ali: “Aqueles que esquecerem a
injúria e buscarem uma reconciliação serão recompensados por
Deus” (42:40). Além disso, a lei deixava claro que, dentro da
igualdade da Ummah, não existiam fiéis “mais iguais”, como
acontecia com a elite de Meca. Um bandido poderoso, portanto, deveria
ter o mesmo tratamento de um ladrão pé-de-chinelo, pelo menos no
papel.
Outra mudança importante foi no campo dos direitos das
mulheres. Maométinha se tornado polígamo em Medina. Como
qualquer xeique da época, tinha várias esposas e concubinas. Mas
era natural que, como viúvo de uma mulher poderosa, ele também
entendesse que mulheres não eram camelos. Então ele concedeu um
direito importantíssimo às mulheres da Ummah: elas poderiam herdar
propriedades, pela primeira vez na história das Arábias. Ele também
proibiu que maridos se apropriassem dos dotes de casamento, pagos
pelo pai da noiva no ato do casório. O dinheiro deveria ser mantido
como uma poupança exclusiva da mulher, funcionando como um seguro em
caso de divórcio.
Em suma: se Maomé ressuscitasse hoje, deveria ser
chamado para dar palestras de gestão pública. Seu pacote de
reformas deu tão certo que vários habitantes de Medina entraram
para a Ummah. Até porque era fácil: bastava aceitar que só havia
um deus e que Maomé era seu profeta, estar disposto a
pagar o zakat e pronto: você se tornava membro da tribo do Profeta.
Tribo que, conforme foi ganhando mais membros, começou a ser
conhecida por outro nome: Islã (“subordinar-se a Deus”). E seus
membros passariam a ser chamados de “muçulmanos” (“aqueles
que se renderam a Deus”). Mas quem não tinha se rendido a nada
eram os Quraysh, lá em Meca. Eles não tinham esquecido a ameaça
que Maomé representava. Ainda queriam matá-lo de todo
jeito.
A primeira batalha entre os Quraysh e a Ummah aconteceu dois anos
depois da Héjira, em 624. Foi num daqueles roubos de caravana. O
pessoal de Meca soube, via espiões infiltrados em Medina, que os
muçulmanos iriam saquear uma caravana específica, que vinha da
Palestina. Então colocaram um exército de mil homens para
protegê-la. Maomé chegou com 300. Deveria ser o seu fim.
Não foi. Talvez por excesso de confiança dos Quraysh, talvez por
muito mais excesso de confiança dos muçulmanos, o fato é
que Maomévenceu. Dali para a frente, seguiram-se anos de
batalhas.
Entre uma luta e outra, Maomé continuava tendo seus
transes e recitando o futuro Alcorão. Os versos mais belicosos do
livro sagrado são justamente dessa época. O mais conhecido é a
surata (capítulo) 9, versículo 5: “Matem os idólatras, onde quer
que eles estejam; capturem, acossem, embosquem”. O contexto real
deste texto é o da guerra contra os Quraysh, que infiltravam espiões
em Medina. “Idólatra” (ou “politeísta”, ou “infiel”,
dependendo da tradução) não é qualquer um que não seja
muçulmano. A palavra está ali para representar um inimigo
específico, e de um conflito que aconteceu há quase 1.500 anos.
E isso não significa que o Islã tenha mais apreço pela
violência que outras religiões. Algumas partes do Antigo Testamento
parecem ter sido escritas por Quentin Tarantino, dada a torrente de
sangue. E o próprio
Cristo,
que aconselhava dar a outra face em caso de agressão, chegou a
dizer: “Não pensem que vim trazer paz ao mundo. Não vim trazer
paz, mas a espada” (Mateus, 10,34). E isso não significa que
o cristianismo pregue a violência. No caso do Islã, vale o mesmo
raciocínio.
De qualquer forma,
Maomé foi
mais feliz que seus predecessores bíblicos quando empunhou sua
espada: ele passou por cima dos adversários. Em 629, com os Quraysh
cansados de guerra e o Islã mais forte do que nunca, o Profeta
reuniu um exército de 10 mil homens e marchou para Meca. Acabou
conquistando a cidade sagrada sem nem derramar sangue, já que o
inimigo se rendeu na hora. Pronto. Com Meca sob seu
controle, Maomé agora era o homem mais poderoso da Arábia.
Um destino que parecia distante do menino que nasceu sem pai e perdeu
a mãe tão cedo.
Seu primeiro ato foi libertar todos os escravos de Meca. O
segundo, despejar os deuses da Caaba, destruindo as imagens deles e
consagrando o santuário a Allah – a Pedra Negra ficou, para a
alegria de quem gosta de meteoritos.Maomé também poupou as
estátuas de Jesus e da Virgem Maria, os únicos personagens do
Alcorão representados por imagens dentro da Caaba. Mas Maomé não
se aproveitou do poder. Não corou-se “rei de Meca” nem
nada. Voltou para Medina, que tinha se tornado sua cidade de fato, e
morreu em paz, aos 62 anos, deixando 12 viúvas, 3 filhos, 4 filhas e
uma nova nação.
Epílogo
Abu Bakr assumiu a liderança do Islã aos 58 anos, tornando-se o
primeiro Califa (“sucessor”, em árabe). O jovem Ali, que ainda
tinha 30, era o favorito de uma parte dos seguidores. E ainda é. A
sucessão criou uma dissidência pró-Ali hoje conhecida como
“xiita”, que forma uma minoria de 10% dentro do Islã. Os
descendentes dos que apoiaram Abu Bakr são a maioria “sunita”,
que segue a suna, a “tradição”, iniciada naquela época.
Os sucessores do Profeta não pararam em Meca. Continuaram a
expansão da Ummah e, 50 anos depois da morte de Maomé, seus
domínios estendiam-se até o Irã. Mais 50 anos e o norte de África
e um pedaço da Índia já era deles. Outros 50, e eles já dominavam
a Espanha – uma terra tão distante que, quando era meio-dia
nessa ponta ocidental do império, o Sol já estava se pondo nos
domínios mais orientais. Mas esse não foi só um dos maiores
impérios do mundo. Foi um dos mais criativos também: enquanto a
Europa se afundava na escuridão da Idade Média, o Islã construiu
sua própria “Europa” alguns graus de latitude mais abaixo.
Um continente unificado por uma nova religião, e que deixou como
maior legado a ciência: boa parte da matemática que conhecemos hoje
veio de gênios que nasceram sob a religião de
Maomé. Uma
religião humanitária, que, ao propor uma sociedade menos desigual e
mais aberta ao diálogo, encarnou muito do que a humanidade tem de
melhor. Que meia dúzia de psicopatas não acabem com esse legado.
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Fonte:
https://super.abril.com.br/especiais/maome-a-face-oculta-do-criador-do-isla/?fbclid=IwAR10ePOD78B2ivo-FrhDIA_HdMI8qE0HAcL2w_1083k-_UWlcCzY1kRnkOg