terça-feira, 28 de outubro de 2014

A descoberta da Europa - a migração dos kurgans

A descoberta da Europa

Em busca de um novo mundo, povos do leste partiram rumo ao desconhecido. No caminho, encontraram uma gente atrasada, que comia com as mãos e mal dominava a agricultura. Ao lugar que descobriram, hoje chamamos Europa

Beto Gomes | 01/12/2004 00h00
Numa terra praticamente virgem, homens, mulheres e crianças viviam em bandos de 60 ou 100 indivíduos. Isolados uns dos outros, os maiores podiam chegar a 400 pessoas. Alimentavam-se do que conseguiam com uma agricultura muito rudimentar, da caça e do que simplesmente catavam no mato. Eram seminômades, ou seja, ficavam num lugar apenas tempo suficiente para comer o que estava ao seu alcance, aí levantavam acampamento e iam embora. Suas vilas eram mesmo pouco mais que isso: acampamentos. Não construíam muita coisa além de totens ou amontoados de pedras. Não criaram escrita. Não tinham sistema político e seus líderes eram uma mistura de patriarca com guia espiritual. Viviam como selvagens. E eram europeus.
Estamos em 3000 a.C. e, nessa época, o centro do mundo não é a Europa. A 5 mil quilômetros dali, na Mesopotâmia, região entre os rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque, vicejam cidades com mais de 10 mil habitantes. Lá os sumérios desenvolvem leis e códigos para orientar a vida em sociedade. No norte da África, o Baixo e o Alto Egito se unem para formar um dos maiores impérios do mundo antigo, capaz de erguer colossos, como a enorme esfinge de pedra a espiar a planície de Gizé. Eles constróem canais e dominam os ciclos de cheia do rio Nilo. No Extremo Oriente, pequenos reinos vivem sob um só signo: o dragão. A China está prestes a despertar, mas já domina a matemática e a agricultura. Nos três cantos, a pré-história ficou para trás. Eles inventaram a escrita. E com ela preenchem notas fiscais, escrevem livros sagrados, assinam recibos, contratam serviços, registram casamentos e filhos. Fazem cálculos e poesia. Inauguram a história.
E no sul de onde hoje fica a França e ao longo do rio Danúbio, na região que agora chamamos Alemanha, ainda há gente morando em cavernas. Mas esse mundo está prestes a mudar. O agente dessa transformação ainda é um mistério, alvo de muita polêmica entre especialistas, mas definitivamente algo grande aconteceu entre 3500 e 3000 a.C. que transformou a vida na Europa. Algo que causou um salto tecnológico sem precedentes e do qual as marcas se percebem em povos tão diferentes quanto celtas e aqueus, irlandeses e gregos. Segundo o arqueólogo Dinc Sarac, da Universidade de Bilkent, na Turquia, esse algo mais foi a chegada de um povo vindo do leste (de uma região entre a atual Ucrânia e o sul da Rússia), em levas migratórias que durou séculos. “Essa teria sido a ‘descoberta’ da Europa, uma viagem épica só comparável à chegada dos europeus na América, 4 500 mil anos depois”, afirma Sarac, que pesquisa as migrações transcaucasianas e suas influências sobre o povoamento europeu.
Especialistas como Sarac chamam esses descobridores de indo-europeus primitivos e acreditam que, em algum momento entre o quarto e o terceiro milênio antes de Cristo, eles deram início a sucessivas ondas migratórias que os fragmentou em diversos grupos lingüísticos. Uns tomaram o rumo da Índia, influenciando e formando novos povos como os armênios, indo-iranianos, tocarianos e hititas. Outros seguiram para a Europa, onde mais tarde dariam origem aos eslavos, celtas, itálicos, aqueus, jônios, eólios e germânicos. “Eles não formavam uma única sociedade, sólida e organizada, tampouco uma civilização comum. Cada grupo evoluiu de maneira independente, em diferentes épocas e para diferentes lugares, num movimento que chegou a levar séculos”, diz Sarac.
Na verdade, os indo-europeus não tinham sequer um nome para designá-los. O único que receberam surgiu apenas em meados do século 20, quando a antropóloga e arqueólogoa lituana Marjia Gimbutas elaborou uma teoria que deu nova luz à origem dos povos da Europa. Além de algumas hipóteses ainda hoje questionadas pelo meio científico (mas amada pelo neopaganismo new age – religiões que na virada do milênio praticam rituais xamãnicos e adoram entidades da natureza), como a idéia de que se tratava de uma sociedade matriarcal, Gimbutas batizou os primeiros indo-europeus de Cultura Kurgan. Eram assim chamados porque enterravam seus mortos em covas profundas, um método não muito convencional para a época e que caracteriza, segunda ela, esse período e seria um traço comum aos povos que migraram para a Europa nesse período.
Outra coisa em comum é a língua. Em turco, a palavra “kurgan” quer dizer túmulo, sepultura. O mesmo significado que ela tem em eslavo. “De fato, a língua é a chave mais importante nesse tipo de pesquisa que procura revelar a origem tão distante de civilizações tão díspares. Ela mostra que povos que hoje são separados por milhares de quilômetros têm ancestrais comuns. O idioma dos tocarianos (que viveram numa região próxima à China), por exemplo, tem uma forte ligação com o dos germânicos”, diz o antropólogo americano Roger Pearson, editor e fundador do The Journal of Indo-European Studies.
Segundo o antropólogo Jos Stepahnek, checo de nascimento, mas radicado na Universidade de Atenas, na Grécia, essas coincidências lingüísticas são, ainda, um forte indício da presença de um elemento novo, que se impôs e se espalhou por todo o continente.
O invasor
Mas afinal, quem eram os kurgans? Stepahnek diz que eles eram politeístas que acreditavam num deus principal e cultuavam divindades da natureza, como a Lua e a aurora. Não eram tão avançados quanto as civilizações que começavam a se formar nos vales dos rios Nilo, Tigre e Eufrates. Não chegavam nem perto disso. Mas estavam à frente dos povoados que já existiam na Europa. Tinham domesticado o cavalo, usavam carroças de duas ou quatro rodas feitas de madeira maciça, produziam objetos de cobre (facas, adagas e punhais) e possuíam utensílios de ouro e prata, como vasos, contas de colares e anéis.
Diversos animais faziam parte de seu dia-a-dia. Criavam porcos, ovelhas e cabras, mas o cavalo era o mais importante de todos. Além de servirem como meio de transporte, alguns especialistas sugerem que os kurgans sacrificavam cavalos em rituais de sepultamento. Nos sítios arqueológicos da Rússia e da Ucrânia, os ossos dos eqüinos eram os mais numerosos. Mas também foram achados ossos de cervos, alguns dentro dos túmulos de crianças. Sobras de caças? Não exatamente. É certo que os primeiros indo-europeus não foram caçadores e nem grandes agricultores. Então, o que os ossos faziam na tumba dos pequenos kurgans? Provavelmente, não passavam de simples regalos da vida terrena, pois funcionavam como uma espécie de dado em inocentes jogos de apostas.
Para os adultos, os ossos serviam apenas como ornamentos e pequenos utensílios (furadores, talhadeiras e polidores, por exemplo). Suas armas já estavam em outro estágio de evolução, embora o tipo e o grau de desenvolvimento também dividem os pesquisadores. É certo que eles possuíam objetos de cobre e conheciam o estanho, mas ainda não dominavam as técnicas de fundição do bronze, o que só viria a acontecer alguns séculos mais tarde, quando já estavam na Europa. “Os primeiros indo-europeus não eram guerreiros. Além disso, poucos povos dominavam a metalurgia do bronze no terceiro milênio antes de Cristo”, diz o antropólogo italiano Brunetto Chiarelli, professor da Universidade de Firenze.
Para Stepahnek, no entanto, os povos da cultura kurgan já possuíam espadas quando começaram a migrar para lugares mais distantes, levando sua cultura às populações menos avançadas. “Eles conheciam o bronze e produziam armas. Foi assim que resistiram aos conflitos entre vizinhos em seu próprio território, coisa que era muito comum e que, em determinado momento, pode até ter contribuído para que migrassem rumo à Europa”, diz Sarac. “Porém, não foi encontrado nada que indique que a ocupação da Europa tenha sido feita à força. Nada parecido com os indícios de massacres da América. Parece que, embora eles não fossem essencialmente guerreiros – ao contrário, o pastoreio era a principal atividade – sabiam se defender muito bem.”
Além dos vizinhos, eles tinham outro inimigo no Cáucaso: as baixíssimas temperaturas, que chegavam fácil, fácil nos 20 graus negativos. Para eles, qualquer pontinho acima do zero grau já era lucro. Por isso, suas casas tinham fundações de pedra e eram semi-subterrâneas – ou seja, metade embaixo da terra, metade em cima. Nada muito diferente do que acontecia em terras armênias até pouco tempo atrás e que ainda hoje existe no deserto de Gobi. Os kurgans moravam em dois tipos de povoados. Os mais simples não passavam de pequenos vilarejos, sempre ao lado de rios ou córregos, e tinham de dez a 20 casas retangulares, com telhados sustentados por toras finas de madeira. Todas as moradias possuíam pelo menos uma lareira, geralmente feita de pedra. As vilas maiores chegavam a pouco mais de 200 casas e também ficavam perto de rios e florestas. As vilas eram bem protegidas e cercadas por muros de pedra, que podiam chegar a três metros de altura.
Quando chegaram à Europa, os kurgans não mantiveram uma unidade social. Alguns grupos foram rechaçados, outros, a maioria, foram incorporados pelas comunidades locais. Eles trocaram influências e deram origem a outros povos. Alguns se estabeleceram na parte setentrional, outros foram para o norte, uma leva foi para o sul e alguns chegaram até a Grã-Bretanha. Obviamente, esse processo não aconteceu da noite para o dia. Séculos e séculos de migrações e miscigenações se passaram. No meio do caminho, muitos povos resultantes dessa miscigenação simplesmente desapareceram sem deixar qualquer rastro. Outros sofreram tantas mudanças que a principal herança dos antepassados manteve-se presente apenas na língua – e, mesmo assim, com muitas transformações.
Mas essas interações originaram subgrupos que mais tarde atingiram um alto grau de desenvolvimento. Os celtas, por exemplo, estão entre os mais antigos e espalharam-se por boa parte da Europa até serem conquistados pelos romanos. Hábeis na fabricação de objetos de bronze, foram um dos povos europeus mais importantes nos séculos que antecederam a supremacia de Roma. Acredita-se que sua terra de origem seja a região onde hoje ficam a Suíça, Áustria e Alemanha, mas eles chegaram até a Grã-Bretanha e a Península Ibérica.
Outro grupo descendente dos kurgans que viveu dias de glória foram os aqueus. Eles chegaram aos Bálcãs por volta de 2000 a.C. e fundaram diversas cidades, como Micenas e Tirinto. Cinco séculos depois, invadiram a ilha de Creta e assimilaram sua cultura. Aperfeiçoaram sua agricultura, navegação, comércio e construção de armas. Foi aí que nasceu a civilização creto-micênica, que serviu de base para a sociedade grega.
No oriente, os indo-europeus chegaram praticamente até a China e deram origem a povos como os hititas e indo-iranianos. Mas esta já é outra história. Agora, é melhor voltar para o século 21.

Tese é polêmica

Ainda há muito a ser descoberto
Já faz mais de 200 anos que o lingüista inglês William Jones descobriu a surpreendente afinidade entre o grego, o latim e o sânscrito. Na época, observou que muitas palavras destas línguas tinham o mesmo radical e, por conseqüência, poderiam ser derivadas de um mesmo idioma. Alguns anos mais tarde, no início do século 18, outro inglês, chamado Thomas Young, batizou esta língua comum de indo-europeu. Assim, nasciam as primeiras teses sobre a origem e a expansão destes povos. Ainda hoje, a unidade lingüística é um dos principais fundamentos das teorias sobre os ancestrais dos europeus. Mas muita coisa mudou nas últimas décadas.
O primeiro grande salto ocorreu no século passado, com a teoria da antropóloga lituana Marjia Gimbutas, segundo a qual a origem dos indo-europeus seria a atual Ucrânia, entre o Cáucaso e o mar Negro. Baseada em achados arqueológicos, ela afirmou que estes povos já haviam domesticado o cavalo e possuíam armas de bronze, um grande avanço para a época. Eles teriam começado a migrar para a Europa por volta de 3000 a.C., assimilando as comunidades locais e dando origem a vários povos que, séculos depois, formariam as grandes civilizações do mundo antigo. Ainda hoje, a teoria de Gimbutas é a mais aceita entre os estudiosos, mas com algumas mudanças importantes. O americano James Mallory, professor da Universidade da Califórnia, acredita que as migrações começaram em 4000 a.C. – ou seja, antes da época apontada pela antropóloga lituana. Já o arqueólogo inglês Colin Renfrew, professor da Universidade de Cambridge e um dos maiores especialistas no assunto, sugere que os primeiros indo-europeus começaram a migrar para a Europa a partir da atual Turquia por volta de 7000 a.C. Para Renfrew, eles eram agricultores em busca de novas terras.
As teorias, aparentemente contraditórias, podem se completar. “Como não temos provas escritas, dificilmente chegaremos a uma verdade absoluta. Mas existe um consenso entre parte dos estudiosos acerca das teorias de Gimbutas e Renfrew”, diz o antropólogo americano Roger Pearson, fundador do The Journal of Indo-European Studies.
Outros, porém, crêem numa terceira via: a Teoria da Continuidade do Paleolítico, que diz que os europeus evoluíram de comunidades neolíticas. A principal evidência seriam estudos que mostram que 80% dos genes dos atuais europeus conferem com as análises de DNA dos povos locais no Paleolítico. Mas isso não convence os que acreditam nas ondas migratórias. “Uma pandemia acabou com diversos povoados do neolítico e não podemos afirmar que eles são nossos ancestrais diretos", diz o antropólogo italiano Brunetto Chiarelli, da Universidade de Firenze.

Longa estrada da vida

As ondas migratórias duraram mais de 2 mil anos
4400 – 4200 a.C.
Os indo-europeus partiram da região do Cáucaso por volta do ano 4000 a.C., em direção à Europa e à Índia. Foi a primeira de uma série de ondas migratórias, que mudaram a história dos povos antigos
3500 – 3000 a.C.
As migrações eram muito lentas. Podiam demorar séculos e até milênios. Por volta do ano 3000 a.C., os indo-europeus estavam próximos aos Bálcãs. Mas chegaram de vez à região apenas 500 anos depois
3000 – 2500 a.C.
Os povos das estepes russas chegaram à Europa Setentrional por volta de 2500 a.C. Depois de assimilar e influenciar as culturas locais, acredita-se que deram origem aos eslavos, germânicos e celtas
Migrações sucessivas
Apesar da unidade lingüística, os indo-europeus continuaram migrando de maneira independente, em diferentes épocas e para diferentes lugares. Eles nunca formaram uma sociedade sólida e organizada

Passado europeu

Vestígios de pedra e de barro. De ferro e cerâmica
8000 – 3500 a.C. - Neolítico
As comunidades iniciam um período de desenvolvimento econômico, social e tecnológico. Surgem os indo-europeus em 5 000 a.C., no Cáucaso, provavelmente. Mil anos depois,começam as migrações. A estatueta ao lado, encontrada no Líbano, data dessa época
3000 – 1100 a.C. - Idade do Bronze
O uso cada vez mais comum de utensílios de cobre muda as formas de organização econômica e social em algumas regiões da Ásia Ocidental. Estas técnicas de metalurgia logo chegam à Europa, pela Península Balcânica. No início dessa época, as ondas migratórias indo-européias estavam em pleno funcionamento
5000 – 3000 a.C. - Kurgan
Foram os primeiros indo-europeus. Moravam nas estepes das atuais Rússia e Ucrânia e eram pastores nômades que deram origem às principais civilizações clássicas. Eram mais avançados que os povoados europeus, mas estavam distantes dos mesopotâmios e egípcios
3000 a.C. - Mesopotâmia
Enquanto outros povos não passavam de comunidades agrícolas, a Mesopotâmia já possuía cidades, havia inventado a escrita cuneiforme e uma organização político-social jamais vista na história
3000 a.C. - Egípcios
Na época em que os indo-europeus estavam engatinhando, os egípcios davam os primeiros passos para a formação de uma civilização organizada. Já dominavam técnicas avançadas de irrigação e construção de canais e haviam criado a escrita hieroglífica
2000 – 1500 a.C. - Gregos
Sofreram intensa influência dos povos indo-europeus chamados aqueus. Eles dominaram a região dos Bálcãs no século 15 a.C., após invadirem e assimilarem a cultura da ilha de Creta, uma das civilizações mais avançadas da época

Saiba mais

Livros
Proto-Indo-European Culture: the Kurgan Culture During the 5th to the 3rd Millennia B.C. , de Marija Gimbutas, New and Updated, 1970 - A gênese das teorias sobre os indo-europeus está neste livro, publicado pela antropóloga romena. É o ponto de partida de qualquer estudo, abrangente ou não, sobre a origem destes povos.
Archaeology and Language. The Puzzle of Indo-European Origins, de Colin Renfrew, Cambridge University Press, 1996 - Um dos maiores especialistas no assunto no mundo faz uma espécie de leitura atualizada da teoria de Gimbutas.
Origini delle Lingue d’Europa – La Teoria della Continuità, de Mario Alinei, Il Mulino, 2000 - Defende teoria da continuidade, coloca em xeque as idéias mais aceitas hoje em dia. Em dois volumes.
Sites
www.jies.org - Página do The Journal of Indo-European Studies, traz artigos recentes e é o melhor complemento de qualquer leitura sobre o assunto. Mas é preciso pagar para ter acesso aos textos
www.continuitas.com - É o site oficial dos defensores da Paleolithic Continuity Theory, o principal contraponto às hipóteses mais aceitas pelo meio científico atualmente


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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Heitor Villa-Lobos: Mistério de 120 anos

Heitor Villa-Lobos: Mistério de 120 anos

Até hoje, estudiosos não chegaram a um acordo sobre o que é verdade e o que é mito sobre a vida de Villa-Lobos, o maior compositor brasileiro

Jeanne Callegari | 01/03/2007 00h00
Heitor Villa-Lobos, o maior compositor brasileiro da história, nasceu há exatos 120 anos. Muito já foi escrito, ouvido e comentado a seu respeito. O que intriga, porém, é o que não foi dito: mais de um século após seu nascimento, a vida do gênio continua cercada de um tanto de mistério.
A começar pelas famosas viagens que o maestro fez pelo interior do Brasil – de onde tirou inspiração para desenvolver o nacionalismo presente em sua música, traço pelo qual ficou tão conhecido. Parece ter havido certo exagero dele ao relatar suas expedições pelos rincões do país. “Só a primeira viagem à Amazônia, de 1911, está confirmada. Villa estava com uma companhia de operetas como violoncelista. As demais são duvidosas e tudo indica que ele personalizou aventuras contadas por seu cunhado, que trabalhou no projeto Rondon”, diz Vasco Mariz, musicólogo e diplomata, autor do livro Villa-Lobos – O Homem e a Obra.
Aliás, as pesquisas de Vasco Mariz solucionaram um dos episódios mais míticos da vida do maestro. Corria que ele havia inventado para a imprensa francesa, em 1929, uma história de que teria sido seqüestrado por índios canibais brasileiros e só escapara da panela por causa de sua música. Na verdade, diz Mariz, quem inventou a história foi uma amiga dele, a poetisa francesa Lucie Delarue Mardus, que a publicou na revista Instransigeant. E conseguiu o que queria: fazer lotar o concerto do músico.
Se, porém, algumas de suas viagens e histórias foram romanceadas, as pesquisas que fez dos sons da natureza, do folclore e da música popular foram, de fato, fundamentais para sua obra. “Villa-Lobos introduziu os sons do Brasil na música, assim como Guimarães Rosa introduziu em sua escrita o falar das Gerais”, diz Maria Maia, autora de Villa-Lobos – Alma Brasileira. Para o maestro, as ousadias formais e as inovações técnicas que introduziu eram não resultado de um modismo, mas a melhor maneira de retratar a exuberância da natureza e do povo brasileiro. Antes dele, era considerado desprezível aproveitar o folclore na música erudita brasileira, segundo Vasco Mariz.
Nascido no Rio de Janeiro, Villa-Lobos aprendeu violoncelo e clarinete com o pai, que tocava em grupos amadores de música clássica. Em viagem pelo interior de Minas, onde a família morou quando tinha 6 anos, o menino aprendeu a gostar da música rural, sertaneja, e seu interesse aumentou ao observar o choro dos bares cariocas. Para tocar aquelas canções, Villa-Lobos resolveu aprender violão, mas teve que estudar escondido: os pais não aprovavam seu envolvimento com a música popular da boemia carioca. Era dotado de um ouvido musical privilegiado. Conseguia, por exemplo, compor, ouvir rádio e conversar, tudo ao mesmo tempo. E chamava esse dom de “ouvido profundo”.
Depois das viagens que fez ao interior, Villa-Lobos começou a incorporar os elementos nacionais às suas composições. O sentimento nacionalista se fortaleceu ainda mais durante a Semana de Arte Moderna de 1922, de que participou ativamente – detalhe: de terno e chinelo de dedo, por causa de uma crise de ácido úrico nos dedos do pé.
A partir daí, o sotaque brasileiro de sua obra ficou cada vez mais nítido. Comparado aos maiores nomes da história, como Wagner, Bach e Chopin, o brasileiro foi, e continua sendo, um dos compositores contemporâneos mais gravados lá fora. Ironicamente, quanto mais nacional sua arte ficava, mais se universalizava e conquistava o mundo. Como é típico dos gênios.

O maestro educador

Ele lutou pelo ensino de música nas escolas
Cinco de março, data de nascimento de Heitor Villa-Lobos, virou o Dia Nacional da Música Clássica no país. Uma homenagem ao homem que desenvolveu o maior projeto de educação musical do Brasil. Mais do que formar talentos, a idéia do maestro era despertar o interesse pela música erudita. O primeiro trabalho foi feito com o governo do estado de São Paulo, no início dos anos 30. Villa-Lobos, que residira um tempo na França, desistiu de seu plano original de voltar à Europa porque queria cuidar do projeto. Em seguida, foi ao Rio de Janeiro, onde coordenou a implantação da educação musical nos colégios. Nessa época, desenvolveu o seu Guia Prático, coleção de livros para o ensino de música. Villa-Lobos acreditava que, antes de estudar teoria, as crianças deviam dominar noções de ritmo, som e timbre. Seu método foi bem aceito e o maestro contiunou o trabalho, criando o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, em 1942, e dirigindo apresentações, como a de 40 mil estudantes no 7 de Setembro de 1940. Um dia após a morte do maestro, em 1959, o canto deixou de ser obrigatório nas escolas. Hoje, poucos colégios têm a música no currículo.

Obtido de: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/heitor-villa-lobos-misterio-120-anos-435124.shtml?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_avhistoria

domingo, 27 de julho de 2014

O poder da infantaria grega: homens de ferro

O poder da infantaria grega: homens de ferro

A infantaria pesada grega, com sua muralha de escudos, reinou soberana na Antiguidade

Fabiano Onça | 01/03/2007 00h00
A muralha de escudos que os persas enfrentaram na batalha das Termópilas sangrou seu vasto exército, mas, para os próprios persas, aquela formação de combate estava longe de ser uma novidade. Desde o século 7o a.C., quando os espartanos, na aurora de sua civilização, lutavam para obter a supremacia contra os vizinhos messênios, já se ouvia falar da falange grega. O poeta Tirteu compôs várias canções que glorificavam o jeito de guerrear dos helênicos – a luta entre fileiras de hoplitas. “Deixe que cada homem firme seus pés/ Mirando o inimigo com os lábios semicerrados/ Cobrindo sua coxa, tornozelo, peito e cotovelo/ Com a larga medida de seu escudo”, dizia um poema.
Trirreme
O que era? - O navio de guerra grego tem origem incerta, a despeito de autores como Tucídides apontarem seu uso desde o século 8o a.C. Tinha em média 35 metros de comprimento por não mais do que 5 metros de largura. Contava com três fileiras de remos de cada lado (daí seu nome). A velocidade média girava em torno de 7 nós (13 km/h). Sua velocidade de arranque podia chegar a 11,5 nós (21 km/h).
Por que foi importante? - Numa península coalhada por cerca de 3 mil ilhas, o uso de trirremes era intenso e decisivo. Foi com trirremes que os gregos obtiveram sua vitória decisiva contra os persas, na batalha de Salamina. A importância dessa embarcação era tanta que os remadores eram sempre homens livres e bem remunerados.
Arco composto
O que era? - Ao contrário do arco tradicional empregado no Ocidente, o arco composto utilizado pelos persas era feito, além da madeira, com diversos materiais, como tendões e chifres de animais.
Por que foi importante? - Era geralmente menor e mais manejável que sua contraparte ocidental. Isso permitia seu uso em carruagens de guerra ou mesmo por cavaleiros, como os que acompanhavam Xerxes.
Escudo
O que era? - A parte principal do escudo dos hoplitas era feita de tábuas de madeira com largura de 20 a 30 cm cada.
Por que foi importante? - “Homens vestem elmos e couraças para suas próprias necessidades, mas carregam escudos para a defesa de todos os homens da linha”, dizia Plutarco.
Lança
O que era? - A lança de um hoplita media entre 2 e 2,7 metros. Era empunhada com apenas uma das mãos, já que a outra tinha de segurar o escudo.
Por que foi importante? - Era a principal arma de um hoplita. A lança possuía duas pontas: a lâmina principal e uma espécie de espeto na base da arma. O espeto era usado para o golpe de misericórdia nos inimigos caídos, conforme eram pisoteados.
Falange grega
O que era? - Para os gregos, a luta entre dois exércitos dava-se principalmente pelo atrito entre as falanges de hoplitas – espécie de infantaria pesada, armada com lanças e largos escudos.
Por que foi importante? - A pesada proteção dos hoplitas transformava a falange num trator. Um hoplita carregava até 27 quilos de equipamentos. Não à toa, eram chamados de “homens banhados no ferro”.
Espada
O que era? - Não ultrapassava 60 cm e servia tanto para cutiladas quanto para golpes de balanço. Posteriormente, os espartanos desenvolveram uma versão ainda menor, com não mais do que 30 cm.
Por que foi importante? - Embora fosse uma arma secundária, era usada pelos hoplitas quando a lança havia sido perdida ou quando os soldados estavam comprimidos no meio de uma luta entre falanges, com quase nenhum espaço de manobra.

Obtido de: guia do estudante - o poder da infantaria grega

O Código de Hammurabi

Hammurabi: o homem do código

Conquistador temido e político habilidoso,o imperador Hammurabi usava suas vitórias militarespara impor a ordem na Mesopotâmia, apoiado no conjuntode leis que marcou a história do direito

Flávia Ribeiro | 01/11/2005 00h00
O deserto virou mar por um dia em 1754 a.C. Mas a inundação que destruiu Eshnunna, uma das grandes cidades-reinos da Mesopotâmia antiga, não teve nada a ver com a natureza. A catástrofe foi provocada por um homem: Hammurabi, o fundador do Império Paleobabilônico, sexto rei na dinastia de Babel. Conquistador da Mesopotâmia entre 1792 e 1750 a.C., ele já era senhor de um grande território quando, cansado de esperar a rendição de Eshnunna às suas tropas, mandou abrir uma barragem e inundou o local. Essa atitude drástica teria sido um pedido de Marduk, deus nacional de Babel, e dos deuses sumérios Anu e Enlil: destruir a cidade com uma grande massa de água. Oficialmente, os deuses sempre estavam por trás dos atos de Hammurabi, mas quem dava a última palavra era ele mesmo. Graças a sua sabedoria política e a sua habilidade militar, tornou-se um dos grandes líderes da Antiguidade. E o código de leis que usava durante seu governo ficou célebre como uma das primeiras expressões escritas do direito.
A data em que Hammurabi nasceu é desconhecida, mas sabe-se que ele ainda era um jovem quando assumiu o trono de Babel, em 1792 a.C. Naquela época, a cidade era subordinada a outros reis, todos de tradição ou origem semita – como ele, que pertencia ao povo amorita. Quando morreu, 42 anos depois, Hammurabi havia se transformado no soberano de toda a Baixa Mesopotâmia. O território sob seu poder corresponderia, hoje, ao sul do Iraque e a parte da Síria. Não parece grande coisa, mas, há 3 750 anos, esse era quase todo o mundo conhecido pelo povo de Babel – e esse “quase” nunca deixou de incomodar o rei, já que o norte do Iraque, na época chamado de Assíria, foi cobiçado, mas não conquistado por ele. “Hammurabi era um guerreiro, um grande general que ia para a frente de batalha”, conta Emanuel Bouzon, professor de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e autor de O Código de Hammurabi e As Cartas de Hammurabi. “A classe dirigente das grandes cidades conquistadas era morta ou presa, e alguns reis de lugares menores se submetiam.”
Mas só vencer as batalhas não bastava. Era preciso manter a ordem nos territórios conquistados, o que Hammurabi fez brilhantemente. Mais do que um general, ele era um administrador e um legislador, que legou à humanidade um dos mais antigos e importantes conjuntos de leis. Elas estão inscritas numa estela (rocha destinada a receber textos) de diorito negro, que foi encontrada em 1901 numa expedição arqueológica francesa ao Irã. É o famoso Código de Hammurabi, hoje exposto no Museu do Louvre, em Paris. Ele contém 282 sentenças baseadas na tradição oral, nas crenças religiosas e no costume, compiladas por escribas da época. A grande maioria delas provavelmente foi proferida pelo próprio Hammurabi, ao julgar acontecimentos ocorridos durante seu governo. O trecho mais famoso é o que institui a chamada lei de talião, pregando que um criminoso deve pagar por seus crimes na mesma moeda (leia quadro na página seguinte).
A criação e a divulgação de um código legislativo escrito serviram para cristalizar a autoridade do Estado sobre os súditos e, ao mesmo tempo, regular o funcionamento da sociedade. “Com leis redigidas, definem-se as relações entre os homens, assim como as relações deles com suas posses, originando o direito de propriedade”, explica Márcio Scalercio, professor de História da Universidade Cândido Mendes e da PUC-RJ, autor de Oriente Médio – Uma Análise Reveladora sobre Dois Povos Condenados a Conviver. “O Código de Hammurabi não traz as primeiras leis escritas. Mas, daquela época, foram as que melhor chegaram a nós, e elas consagram princípios que duram até hoje, como o valor do testemunho e da prova.”
GUERRA E PAZ
Ao registrar suas leis, Hammurabi não agiu só como legislador, mas como um marqueteiro de primeira, unindo senso de justiça a autopropaganda. Na pedra que contém seus pronunciamentos legais há também um prólogo e um epílogo, nos quais ele se apresenta como um rei “prudente” e “perfeito”, escolhido por deuses como Marduk “para fazer surgir justiça na Terra, para eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco”. Em outra passagem, o rei não hesita em se auto-intitular o “Sol de Babel”.
Como soberano absoluto, Hammurabi controlava cada canto de seu império com uma belíssima rede de informações – tinha representantes em todas as cidades que governava, com quem se comunicava por meio de correspondência. Foram encontradas mais de 150 tábuas com inscrições dele endereçadas a três funcionários de Larsa, uma das cidades que conquistou. Essas “cartas” tratavam de temas como julgamentos de crimes, organização agrícola, distribuição das terras entre os homens e ordens sobre trabalho compulsório. Nada escapava ao olhar do rei, nem mesmo a tosquia de ovelhas em uma cidade distante ou um caso de suborno numa localidade do norte. “Era um reino grande, mas ele sabia de tudo e mandava em tudo, era obedecido em todo canto. Havia assembléias de anciãos, assembléias do povo, mas a palavra final era dele”, diz o historiador Bouzon. “Quando não se chegava a um acordo na sentença de um julgamento, mensageiros levavam o caso até a instância final, que era o próprio rei.”
Além de firmar alianças militares com os reis de outras cidades da Baixa Mesopotâmia, Hammurabi explorava a rivalidade entre eles, fazendo com que se destruíssem mutuamente, deixando assim o caminho livre para seu próprio exército. Depois de tomar uma cidade, ele tratava de pacificá-la: reconstruía edifícios e enfeitava ainda mais o templo do principal deus local, como prova de tolerância religiosa. Costumava também arrebanhar colaboradores entre os próprios habitantes do lugar e colocá-los à frente do governo local. Ganhava, assim, a confiança dos moradores submetidos a seu poder e evitava revoltas.
A faceta de bom administrador se manifestava quando Hammurabi promovia o crescimento comercial e agrícola de seus territórios. Em seu reinado, novos canais para irrigação e navegação foram construídos, e os antigos foram aprimorados. Houve ainda trabalhos de regulagem do curso do Eufrates, um dos rios que banham a Mesopotâmia. Foi com medidas assim que, apesar de muitas vezes ter imposto seu domínio pela força, o líder babilônio conseguiu passar uma boa imagem para a posteridade. “Ele propagou a ideologia semita do rei como o bom pastor, preocupado com os ‘cabeças pretas’, como se chamava o povo”, afirma Bouzon. Ao morrer, em 1750 a.C., o comandante deixou o opulento Império Paleobabilônico como herança para seus descendentes. A dinastia ainda durou cerca de 150 anos, mas não resistiu à ausência de seu fundador. Muitas cidades se sublevaram e a Mesopotâmia acabou invadida pelos hititas em 1594 a.C., quando Babel foi saqueada e incendiada. “Enquanto Hammurabi reinou houve paz, mas ela não sobreviveu à sua morte”, diz Bouzon. Acredita-se que a centralização exagerada do governo nas mãos do general tenha tornado muito difícil a tarefa de seus sucessores em substituí-lo.

O código do homem

Para Hammurabi,a punição tinha que sersemelhante ao crime
A chamada lei de talião (talionis, em latim, significa “tal” ou “igual”) apareceu pela primeira vez no Código de Hammurabi. Ela nasceu de um conjunto de sentenças em que o imperador dizia frases como: “Se um homem livre destruiu o olho de um outro homem livre, destruirão seu olho” e “Se um homem livre arrancou um dente de um homem livre igual a ele, arrancarão o dente dele”. Além dos homens livres, chamados de awilum, a sociedade paleobabilônica tinha escravos e uma classe social intermediária chamada muskênum. Quando um awilum cometia alguma dessas ofensas a um muskênum u a um escravo, também pagava por isso, mas o castigo era mais brando: uma multa. Várias leis de Hammurabi seguiam o princípio do talião. Uma delas determinava que se um filho adotivo renegasse os pais que o criaram, dizendo “Tu não és meu pai, tu não és minha mãe”, teria a língua cortada. Alguns séculos depois, o direto à retaliação ganhou novas versões. No Velho Testamento, no capítulo 21 do livro do Êxodo, está escrito: “Se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento”. Já em 450 a.C., quando a plebe romana exigiu que as leis fossem escritas para que não houvesse favorecimento aos patrícios, surgiu a Lei das 12 Tábuas. E lá estava, no parágrafo 11 da sétima tábua: “Se alguém ferir a outrem, que sofra a pena de talião, salvo se houver acordo”. Apesar de parecer bárbaro, esse tipo de norma foi muito importante para o direito. “A lei de talião é um ensaio de como se estabelecer a pena conforme a intensidade do delito”, explica o historiador Márcio Scalercio. “Todos concordam que a pena para quem rouba deve ser uma e para quem comete assassinato deve ser outra. A diferença é que na maioria das sociedades atuais a lei de talião não existe mais de forma literal.” Mas não em todas. Há países do Oriente Médio em que se paga olho por olho, literalmente. Na Arábia Saudita, no Iêmen e em algunsdos Emirados Árabes, ladrões ainda têm as mãos cortadas.

Saiba mais

Livros
O Código de Hammurabi, Emanuel Bouzon, Vozes, 2003 - Traz as sentenças de Hammurabi comentadas, traduzidas pelo autor diretamente das pedras originais. Tem ainda uma introdução sobre a época do soberano e seu legado.
As Cartas de Hammurabi, Emanuel Bouzon, Vozes, 1986 - Mais de 150 cartas de Hammurabi para seus funcionários em Larsa ganham tradução comentada.
Sociedades do Antigo Oriente Próximo, Ciro Flamarion S. Cardoso, Ática, 1995 - Uma análise das sociedades do antigo Oriente, com destaque para o Egito e a Baixa Mesopotâmia, onde viveu Hammurabi.

Obtido de: guia do estudante - codigo de hammurabi

sexta-feira, 4 de julho de 2014

As Crises da Igreja

Habemus crisem. Yes, we got crisis. 
As crises da Igreja.

As crises da igreja católica - Habemus crisem

A renúncia de Bento XVI é mais um episódio da longa história do papado. Em 2 mil anos, a Igreja encarou assassinatos, sequestros, invasões, cismas e imoralidades - agora está diante de escândalos financeiros e casos de pedofilia

Texto Tiago Cordeiro | 20/09/2013 16h10
Nunca aconteceu nada igual nos últimos seis séculos. Dos 266 homens promovidos a representantes diretos de Deus na Terra, somente 14 deixaram o cargo com vida. Ao anunciar ao mundo sua renúncia, Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, sabia bem o alcance de sua decisão. "Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino", afirmou em latim, diante de um grupo de religiosos aturdidos.

"Ele não aguentou os escândalos de pedofilia, as divisões políticas internas e as graves suspeitas de irregularidades financeiras", diz o pesquisador Anura Guruge, autor de The Next Pope. "O Vaticano está em crise mais uma vez. Mas essa situação não é nada perto de outros problemas que a Igreja já enfrentou no passado." Conflitos, de fato, acompanham o cristianismo desde sua origem. "Ao longo da história, as crises do Vaticano são causadas principalmente por três motivos: divergências internas, que provocam rompimentos, como o cisma com Bizâncio e o de Avignon; falta de seriedade e ética de seus líderes, o que facilita os casos de corrupção; e incapacidade para lidar com pressões externas, algo que abalou a Igreja, por exemplo, durante o escândalo do Holocausto", afirma a historiadora Brenda Ralph Lewis, autora de The Popes: Vice, Murder and Corruption in the Vatican (Os papas: vício, morte e corrupção no Vaticano, sem tradução).

Nas próximas páginas, você vai conhecer outros momentos em que o cristianismo enfrentou grandes turbulências. "A crise vai ser superada, e muitas outras virão", diz Donald Prudlo, da Universidade do Alabama. "Estamos falando da instituição mais antiga e resistente do mundo."


Divisões e cismas

As confusões no catolicismo estão em sua origem. Os cristãos nem se preocuparam em se organizar - Jesus tinha prometido que voltaria e eles achavam que seria logo. "Nas primeiras décadas, a única reunião de encontro entre os fiéis era um jantar semanal para relembrar a Santa Ceia", diz o medievalista Roger Collins.

À medida que o tempo passava, o volume de fiéis crescia e a perseguição dos romanos aumentava, foi preciso adotar uma série de medidas práticas. Cada uma das principais cidades do império ganhou um bispo, que chefiava os seguidores. Foi só com o passar do tempo, aliás, que o bispo de Roma se tornou mais importante do que os colegas.

Outro problema era unificar doutrinas. No século 4, pelo menos cinco grupos defendiam linhas diferentes e tinham bispos influentes. Dois deles, em especial, foram derrotados de-pois de muito trabalho. Para os marcionistas, seguidores de Marcião de Sinope (c.110-160), Jesus nunca teve um corpo físico e o judaísmo não deveria ser a base da nova religião. Para os arianos, seguidores do presbítero Ário (256-336), de Alexandria, não havia Santíssima Trindade: Jesus era filho de Deus, mas não parte dele. A linha de pensamento que conhecemos hoje venceu a disputa depois de décadas de conflitos.

O primeiro grande concílio, em Niceia, em 325, era tão controlado pelos arianos que o bispo de Roma, Silvestre I, se recusou a comparecer. Mas, sob o comando do imperador romano Teodósio I (347-395), os arianos foram derrotados tempos depois. A transformação do bispo romano em papa (ou pai) da Igreja desagradou os religiosos de Constantinopla. Desde a queda do Império Romano, em 476, eles é que estavam no comando. O cisma mesmo, que criou a Igreja Cristã Ortodoxa, só foi formalizado no século 11. Mas, ao longo desses 1 100 anos desde a morte de Jesus, foram muitas as brigas.

Antipapas europeus

As rixas entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla eram constantes. Os bispos da cidade fundada pelo primeiro imperador cristão, Constantino, se ressentiam por não ter voz em decisões importantes sobre rituais ou normas de conduta, como o celibato (que a Igreja oriental não aceita). Os dois bispados romperam entre 482 e 519 e entre 866 e 879, mas acabaram se reconciliando. A falta de seriedade dos papas da pornocracia (veja na pág. 32) complicou as relações com os bispos orientais. Em 1054, o papa Leão IX tentou reagir excomungando o patriarca de Constantinopla da época, Cerulário, que enviou sua própria carta de excomunhão para Roma. Era o rompimento definitivo. Cerulário declarou fundada a Igreja Ortodoxa, enquanto Leão declarou que os cristãos de Roma eram membros da única fé, eterna e universal, católica (expressão que vem do grego katholikos). A excomunhão mútua não foi levada a sério na época, já que não era a primeira vez que a Igreja das duas cidades rompia. A situação da Europa e do Oriente, as Cruzadas e a expansão do Islã radicalizaram a separação, que parecia temporária. As duas Igrejas nunca mais reataram.

Durante 39 anos, a Igreja esteve rachada dentro da Europa. O cristianismo ocidental teve dois papas simultâneos - por um curto período, eles chegaram a ser três. Não que os antipapas fossem novidade. Ao longo da história, foram mais de 30, começando cedo, com Hipólito de Roma, em 235. Era comum que cardeais insatisfeitos se declarassem papas e levassem consigo parte do clero. Também não era raro que, em períodos mais turbulentos, os chefes da Igreja se mudassem de Roma. Papas governaram de outras cidades italianas, como Viterbo, Orvieto e Perugia. Pelo menos três deles, Urbano IV (1200-1264), Clemente IV, (?-1268) e Celestino V (c.1260-1314), nunca estiveram em Roma. Mas o cisma de Avignon era um problema muito maior. Dessa vez, a França quase virou a sede do comando da Igreja.

A eleição de Urbano II, papa entre 1088 e 1099, revoltou os cardeais franceses, que ques-tionaram sua personalidade. Diante do impasse, elegeram Roberto de Geneva, que assumiu com o nome Clemente VII e se declarou papa - hoje considerado antipapa. Cada lado arregimentou nobres de diferentes países e o cisma se estabeleceu. Papas e antipapas se seguiram por razões políticas - diferentemente do cisma com o Oriente, não havia disputas teológicas em jogo.

Em 1409, um concílio em Pisa resolveu que os dois papas não tinham autoridade alguma e elegeram um terceiro. Mas ninguém renunciou, e a Igreja passou a ter três líderes. Foi preciso que um antipapa, João XXIII, fosse preso e renunciasse, outro, Bento XIII, fosse deposto, e o papa oficial, Gregório XII, renunciasse para que, em 11 de novembro de 1417, Martinho V (1368-1431) colocasse ordem no Vaticano.

Pornocracia vaticana

Desde o ano 550, o papa não é considerado santo assim que morre, mas precisa ser submetido ao processo tradicional de canonização. Faz sentido - tanto é que, dos 266 papas, apenas 78 são considerados santos. Muitos estavam bem longe disso e chegaram a criar uma tradição de costumes pouco cristãos dentro da Igreja. Em dois períodos em especial, os sumos pontífices transformaram a Santa Sé num reino bem terreno - e dos mais libertinos. "Quando se consolidou como uma força influente, o papado caiu nas mãos de famílias nobres que dominavam a Itália e queriam usar a influência da religião para expandir seu poder", afirma a historiadora Brenda Ralph Lewis.

A baixaria começou no século 10, o período conhecido, dentro da própria Igreja, como saeculum obscurum - ou, como alguns historiadores preferem, a "pornocracia" do Vaticano -, marcado pelo controle de famílias nobres em resultado das tensões iniciadas no fim do século anterior. Foi um período tumultuado: entre os anos 872 e 904, por exemplo, a Igreja teve 24 papas, e quatro deles duraram menos do que um ano no posto. Em 896, Estêvão VII (?-897), resolveu julgar o cadáver do pontífice anterior. Com isso, protagonizou uma das cenas mais bizarras da história do papado. Para o julgamento, ele exumou e mutilou o cadáver do papa Formoso (816-896). Se Estêvão tinha poder para agir assim sem ser questionado, é porque, desde o século 8, a Igreja havia se aliado aos reis francos, Pepino e Carlos Magno, que garantiram aos papas o status de chefes de Estado, com território e exército. "A pornocracia do Vaticano é conhecida pelos papas jovens, alçados ao poder por nobres influentes, que se comportavam como monarcas sem moral, e não como líderes religiosos", afirma o pesquisador Anura Guruge. No centro desses 60 anos intensos está uma nobre chamada Marosia.

Aos 15 anos, Marosia, reputada como uma bela jovem na época, foi vendida por sua mãe, Teodora, como amante ao papa Sérgio III, papa entre 904 e 911, e que na época tinha 45 anos. Marosia e Sérgio tiveram um filho, Alexandre de Tusculum - que em 931 se tornaria o papa João XI. Sérgio foi encontrado morto, possivelmente envenenado. Seus sucessores Anastácio III e Lando I duraram, ambos, dois anos e meio no posto e morreram em circunstâncias não esclarecidas.

João X (860-928), que veio depois, era amante de mãe e filha, Teodora e Marosia. Irritada por não receber a atenção que queria, Marosia se casou novamente, desta vez com Guido de Túscia. Guido prendeu e torturou João X, deposto do papado em vida para que outro amante de Marosia, Leão VI, assumisse o cargo em 928. Sete meses depois, Leão VI foi assassinado. Em seguida, o filho de Marosia com Sérgio III se tornou papa, aos 21 anos. Muitas confusões depois, em 955, chegou ao comando da Igreja um neto de Marosia, Otaviano, de 18 anos. O papa João XII entraria para a história por estuprar fiéis, doar cálices de ouro a suas mulheres e dormir com a amante de seu pai e sua própria mãe, tudo dentro das instalações papais. Com sua morte, em 964, a pornocracia acabou.

Sobrinhos

Por algum tempo, o Vaticano tentou resgatar suas origens cristãs. Não foi uma evolução linear: em 1032, Bento IX chegou ao papado com cerca de 20 anos, abandonou o cargo para se casar, voltou em 1044, vendeu o papado por 680 quilos de ouro um ano depois, retomou o pontificado em 1047, o abandonou em 1048, foi excomungado em 1049 e passou o resto da vida tentando ser papa de novo - nesse meio-tempo, acabou acusado de ter amantes, dormir com cardeais e estuprar fiéis de ambos os sexos.

Em 1274, os papas passaram a ser eleitos por um concílio de cardeais, uma medida que dificultou a indicação de garotos que, em alguns casos, nem padres eram - hoje o papado é o cargo eleito mais antigo de que se tem notícia, ainda que a democracia vaticana seja restrita ao seleto grupos de cardeais da Igreja. Mas, no século 13, mais uma vez a influên-cia de uma nobreza sem lastro religioso tomou conta do Vaticano. Famílias poderosas resolveram aumentar seu poder político e financeiro com a força do papado. Durante a ascensão dos Bórgias, o Vaticano foi ocupado por uma série de pontífices que comprou brigas com famílias inimigas, indicou familiares para cargos cruciais da Igreja e instalou verdadeiros bordéis dentro das instalações papais. A nova crise moral foi mais longa: durou dois séculos e deu origem à palavra "nepotismo": no original, em latim, significava "indicar um sobrinho", uma prática muito comum na época. Como disse Leão X (1475-1521) à família ao assumir o cargo: "Vamos aproveitar o papado, já que Deus nos deu". Foi durante sua gestão, aliás, que teve início a Reforma protestante. Inocêncio VIII (1432-1492) deu cargos de influência a seus dois filhos. Paulo III (1468-1549) teve quatro filhos e fez de um deles, Pier Luigi Farnese, duque de Parma. Por sua vez, Júlio III (1487-1555) teve um longo caso com o cardeal Innocenzo Ciocchi del Monte (leia na página 47).

Venda de indulgências

Antes de o cisma de Avignon quase rachar a cristandade da Europa Ocidental, o Vaticano teve de lidar com outro foco de descontentamento na França. No século 12, os cátaros se espalharam pelo sul do país, pregando uma volta às origens do cristianismo e questionando a liderança papal. Para perseguir os revoltosos, surgiu em 1184 o tribunal da Santa Inquisição. Os cátaros foram massacrados, mas o tribunal continuou existindo para perseguir quaisquer outros inimigos da Igreja, fossem mulheres, pensadores ou homossexuais - em 1252, o uso de tortura para obter confissões foi autorizado.

No século 16, uma nova onda de descontentamento conseguiu dividir o cristianismo mais uma vez. A insatisfação de alguns líderes, como o monge alemão Martinho Lutero, com a con-dução da religião chegou ao auge durante o mandato do papa Leão X, de 1513 a 1521. O pontífice construiu a Biblioteca do Vaticano e tentou acelerar as obras de reconstrução da Basílica de São Pedro, iniciadas em 1505. Para pagar a conta, vendeu móveis, joias e objetos de decoração da cidade. E, principalmente, estimulou as indulgências, a absolvição total dos pecados em troca de dinheiro. O exagero foi tanto que o cardeal Alfonso Petrucci, de Siena, tentou matar o papa - ele e outros conspiradores foram descobertos e mortos por envenenamento.

Em 1517, Lutero pregou na porta da capela de Wittemberg suas famosas 95 teses, que questionavam a autoridade papal e davam início à Reforma Protestante. Foi um baque para Roma. Em pouco tempo, os cristãos da Europa Central, da Alemanha, da Holanda e da Inglaterra já haviam deixado a liderança do papa - boa parte dos franceses seguiu o mesmo caminho sem volta.

Em uma reação tardia, a Contra-Reforma católica acabou com a venda de indulgências em 1567 e declarou guerra aberta às novas denominações protestantes. A medida impediu que o racha fosse ainda maior, mas o estrago já estava estabelecido. Um dos efeitos colaterais foram as guerras religiosas que varreram a Europa durante as décadas seguintes. Em tempo: o tribunal da Inquisição existe até hoje. Agora se chama Congregação para a Doutrina da Fé. Entre 1981 e 2005, ficou sob o comando de Joseph Ratzinger, o agora papa emérito Bento XVI.

Acordo com o fascismo

A Igreja detinha um extenso território no meio das repúblicas italianas. Em 1870, porém, tudo isso tinha mudado. O papa foi convidado a deixar o palácio Quirinal, que passaria a abrigar o rei da Itália unificada. "A Igreja católica esteve muito perto de desaparecer. Foi uma das maiores crises de sua história", diz o jornalista espanhol Santiago Camacho. Se isso não aconteceu, foi graças a um acordo com o líder fascista Benedito Mussolini.

Em 1870, enquanto o Concílio Vaticano I declarava que o pontífice era infalível em matéria de fé e moral, os Estados Papais deixaram de existir e Pio IX (1792-1878) se tornou o último "papa-rei" - a perda de territórios tinha começado em 1859 e terminaria com o fim do controle sobre Roma. Em 1878, o corpo de Pio IX só não foi jogado no Rio Tibre (que já havia recebido os cadáveres de alguns outros papas ao longo da história) porque a multidão enfurecida foi contida pelos seguranças do Vaticano.

Nos anos 20, o catolicismo retomou parte de sua força com uma campanha para devolver à Igreja sua autonomia. A negociação foi conduzida pelos cardeais (e irmãos) Francesco e Eugenio Pacelli. Em 11 de fevereiro de 1929, Mussolini e o papa Pio XI se encontraram na residência papal, o Palácio de Latrão. A Igreja ganhou uma cidade autônoma dentro de Roma, além de US$ 90 milhões. Em troca, reconheceu a autoridade do regime fascista. Na Alemanha, um líder ambicioso comemorou o acordo: "O Vaticano confia nas novas realidades políticas muito mais do que o fez com a antiga democracia liberal. A Igreja reconhece que as ideias fascistas estão mais próximas da cristandade do que o liberalismo judeu". Seu nome: Adolf Hitler.

Em 1933, Eugenio Pacelli e Hitler, agora chanceler alemão, chegaram a um acordo, e políticos católicos apoiariam a lei que dava a Hitler poderes ditatoriais. Em 1939, Pacelli se tornou o papa Pio XII. "Mesmo quando o Holocausto era uma realidade, o papa falou poucas vezes condenando o massacre, e mesmo assim de forma ambígua", diz Camacho. Ainda hoje a postura dúbia de Pio XII provoca polêmica. "O papa não foi conivente com o nazismo, mas tampouco reagiu o suficiente."

Pedofilia e dinheiro

"No Vaticano, tudo o que não é sagrado é secreto", afirma o jornalista Santiago Camacho, autor de Biografia Não Autorizada do Vaticano. Mas, muitas vezes, é difícil manter em segredo o que não é sagrado. Os escândalos que atingiram a gestão de Bento XVI são casos que ocorrem há décadas e só vieram à tona nos últimos dez anos. Desde 2002, o clero vem sendo acusado de protagonizar milhares de casos de pedofilia.

Com a publicação, na época, de uma reportagem do jornal americano Boston Globe, começaram a vir a público centenas de acusações contra religiosos nos Estados Unidos, na Irlanda, no Canadá, na Austrália, na Alemanha, nas Filipinas, na Áustria, na Bélgica e na Argentina, entre vários outros países. As investigações retomaram casos mais antigos. E ainda causam estragos. O único cardeal do Reino Unido com direito a voto no conclave que elegerá o novo papa, Keith O¿Brien, renunciou no final de fevereiro, sob o peso de acusações de abuso sexual. Em 17 de dezembro, três cardeais entraram no apartamento do papa com um relatório de quase 300 páginas em mãos. Julian Herranz, Josef Tomko e Salvatore De Giorgi apresentaram o resultado de oito meses de investigação, encomendada pelo próprio Ratzinger, segundo reportagem do jornal italiano La Repubblica. Ao terminar de ouvir as informações, e com os papéis sobre sua mesa, o papa teria afirmado que a Igreja precisava de um homem capaz de realizar uma "ampla limpeza", de acordo com o jornal. A investigação documentaria a existência de um grupo homossexual, envolvendo padres e bispos, que faria parte de uma rede de prostituição de seminaristas, cantores de coro e imigrantes ilegais.

Os encontros entre membros do clero e garotos de programa seriam realizados em uma sauna de Roma, uma vila privada nos arredores da cidade, em um salão de beleza e na casa de um arcebispo italiano. Os envolvidos nesses casos, e também em escândalos de desvio financeiro, estariam sendo chantageados por outros grupos dentro do Vaticano - de acordo com o relatório, a cúpula da Igreja está dividida em vários partidos informais.

O relatório consolida o resultado de dez anos de escândalos recorrentes. Em 2011, o mordomo do papa, Paolo Gabriele, foi preso por roubar e repassar para o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi documentos pessoais de Bento XVI, incluindo cartas em que o chefe da Igreja era informado dos casos de pedofilia envolvendo o clero em todo o mundo. Um ano antes, em 2010, Angelo Balducci, então presidente do Conselho Nacional de Obras Públicas e consultor do Vaticano, foi pego usando o telefone para intermediar a contratação de jovens para serviços sexuais. Em uma das ligações, Balducci recomendava um garoto disponível para encontros: "Só te digo que ele tem 2 metros, pesa 97 quilos, está com 33 anos e é completamente ativo".

Entre 2002 e 2010, a promotoria de Justiça do Vaticano recolheu alegações contra 3 mil padres, acumuladas nos últimos 50 anos. Um estudo do psiquiatra americano Thomas Plante aponta que 4 392 religiosos católicos estão envolvidos em acusações de molestamento sexual a menores de idade. São mais de 10 mil vítimas, 80% delas meninos. Os processos legais contra paróquias católicas já somam mais de US$ 3 bilhões em indenizações só nos EUA. Oito paróquias decretaram falência. Em reação, Bento XVI pediu diversas desculpas públicas, em cartas e discursos, e afastou o padre mexicano Marcial Maciel (1920-2008), fundador da congregação Legionários de Cristo - Maciel, um ferrenho defensor público do celibato, mantinha relações sexuais com seminaristas jovens, teve seis filhos com duas mulheres diferentes e é acusado de abusar de dois deles.

"Bento XVI era o responsável por investigar esses casos desde 1983, quando se tornou prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em 1997, chegou a pedir ao papa João Paulo II para ser dispensado da função", diz a historiadora Brenda Ralph Lewis. "Ele demorou demais para agir, e só admitiu publicamente que a pedofilia era um problema quando não era mais possível esconder os casos". Antes disso, as denúncias foram tratadas como questão exclusiva dos bispos locais, que muitas vezes apenas transferiam os padres acusados para outras dioceses, onde eles continuavam em contato com crianças.

No mesmo dia de maio de 2012 em que o mordomo do papa foi formalmente acusado de roubar documentos, Ettore Gotti Tedeschi, presidente do Instituto das Obras da Religião (IOR), o banco do Vaticano, recebeu um voto de desconfiança do conselho de supervisão e pediu para deixar o cargo. Em 2010, Bento XVI havia estabelecido uma nova legislação do IOR, com regras mais rigorosas. Pelo visto, aqui também agiu tarde demais.

Desde pelo menos os anos 40, o Vaticano vive cercado por sombras a respeito das operações financeiras de seu banco. Os escândalos envolvendo o IOR começam com a suspeita de lavagem de dinheiro nazista e passam pelo envolvimento de pessoas ligadas à máfia - o arcebispo Paul Marcinkus, que comandou o banco entre 1971 e 1989, chegou a ser conhecido como o "banqueiro de Deus" antes de protagonizar, em 1982, o escândalo do rombo de US$ 1,5 bilhão no Banco Ambrosiano, de Milão. Dois meses antes, o presidente do Ambrosiano, Roberto Calvi, foi encontrado enforcado em uma ponte de Londres. Uma perícia comprovou que ele foi assassinado e depois peduraram seu corpo para simular suicídio. "Parecia estranho que os escândalos financeiros tenham vindo à tona nos últimos anos ao mesmo tempo que os casos de pedofilia", afirma o historiador Donald Prudlo. "Com as informações sobre o relatório de 300 páginas entregues ao papa, tudo se encaixa."

Os papas que saíram vivos

Como regra, o papa só deixa o cargo ao morrer. As renúncias em vida são exceções. De todos os pontífices que a Igreja teve até hoje, só 14 pediram para sair ou foram forçados a se afastar. "Até o século 6, alguns pontífices acabaram presos e exilados, e tinham que deixar o comando para abrir espaço para outro líder", afirma Roger Collins, autor de Keepers of the Keys: A History of the Papacy. "A partir do século 9, e até o século 16, as disputas internas por poder é que deram o tom das renúncias."

Fazem parte do primeiro grupo Ponciano (230-235), condenado pelo imperador romano Maximono Trax a trabalhos forçados na Sardenha. O segundo inclui Celestino V (1294): o último líder não eleito por um conclave publicou um decreto autorizando os papas a renunciar e fez uso dele.

O último a deixar o cargo antes de Bento XVI foi Gregório XII (1406 a 1415). Ele conviveu com dois antipapas e, aos 90 anos, durante o Conselho de Constança, decidiu renunciar para que um nome de consenso assumisse e acabasse com o cisma de Avignon. Uma curiosidade: Ratzinger é o terceiro Bento que renuncia ao papado. Os outros dois foram Bento V (964) e Bento IX (1032 a 1044; 1045; 1047 a 1048).

O último pontífice?

Depois de Bento XVI, o próximo papa vai ser o último - terá nascido em Roma e vai assumir o nome Pedro. Durante sua gestão, o Apocalipse vai começar. Ao acreditar nessa profecia, não só o papado está acabando como o fim do mundo está próximo. Publicada em 1595 pelo monge beneditino Arnold de Wyon, as Profecias de Malaquias são creditadas ao primeiro santo da Irlanda, que viveu entre 1094 e 1148. Durante uma visita ao Vaticano, em 1139, Malaquias teria visto os últimos dez papas e descrito cada um deles com frases curtas em latim. Na equivalência estabelecida entre os pontífices e o texto do século 16, João Paulo II seria De Labore Solis ("Do Trabalho do Sol") e Bento XVI, De Gloria Olivae ("Da Glória da Oliveira"). O próximo, e último da lista, seria Petrus Romanus ("Pedro Romano"). A conferir.

Papas nada cristãos

A lista dos pontífices que envergonharam Roma

Estevão VII (896 A 897)

Para se vingar de seu antecessor, Formoso (891-896), exumou o corpo enterrado nove meses antes, colocou nele as vestes papais e interrogou o cadáver.


Sérgio III (904 a 911)

Mandou matar o papa Leão V (903) e o antipapa Cristóvão. Foi amante da nobre italiana Marosia (veja na pág. 32), com quem teve um filho - que se tornaria papa.


João XII (955 a 964)

Cegou e mandou arrancar a pele de cardeais. Escolhia mulheres entre os peregrinos ao Vaticano para estuprar. Foi morto a marretadas pelo marido de uma amante.


Bento IX (1032 a 1044; 1045; 1047 a 1048)

O único a assumir o papado em três ocasiões diferentes. Na segunda, vendeu o cargo por 680 quilos de ouro ao sucessor, Gregório VI.


Nicolau III (1277 a 1280)

Usou o cargo para transformar parentes em cardeais e distribuir riquezas do Vaticano à família. Na Divina Comédia, de Dante, está no 8º círculo do inferno.


Bonifácio VII (974 a 984)

Para chegar a papa, estrangulou com as próprias mãos o pontífice Bento VI. Foi deposto, mas voltou ao cargo depois de matar mais um papa, João XIV.


Alexandre VI (1492 a 1503)

Teve várias amantes e pelo menos nove filhos - um deles supostamente com sua própria filha, Lucrezia. Em suas festas, garotos nus saltavam de dentro de bolos.


Urbano VI (1378 a 1389)

Mandava torturar cardeais e reclamava que eles não estavam gritando alto o suficiente. Afastado do cargo, viajou para Avignon e virou o antipapa Clemente VII.
Saiba mais

Livros

Sua Santità: Le Carte Segrete di Benedetto XVI, Gianugi Nuzzi, Chiarelettere, 2012.

Keepers of the Keys: A History of the Papacy, Roger Collins, Basic Books, 2009.

Biografia Não Autorizada do Vaticano, Santiago Camacho, Planeta, 2006.

Sex Lives of the Popes, Nigel Cawthorne, Prion, London, 1996.

Popes and Anti-Popes, John Wilcock, Xlibris Corporation, 2005.