segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Etruscos: A cultura que Roma destruiu

Etruscos: A Cultura que Roma destruiu

A civilização etrusca dominou boa parte da Península Itálica até se render ao jugo romano. As necrópoles da região de Toscana contam sua história e os geneticistas tentam descobrir se os etruscos deixaram descendentes.

 

Sarcófago de argila (520-510 a.C.). / Fuzeau Philippe

 Quando os antigos gregos, em sua aventura de expansão comercial e colonizadora, aportaram, no início do século VIII a.C., nas costas do Mediterrâneo, onde hoje é a Itália, esta era considerada uma região bárbara. Por isso, os refinados helenos se surprenderam ao encontrar um povo curioso cuja civilização se mostrava bem avança-da. Mais especialmente, ficaram impressionados com a pirataria que eles praticavam. Os gregos chamaram esse povo de tirreno e com esse nome fi-caram conhecidos os etruscos na Antigüidade. Naquela época, eles ainda viviam em aldeias, não conheciam a escrita, e possuíam uma arte rudimentar, diz o arqueólogo Norberto Guarinello, da Universidade de São Pau-lo, autor de uma extensa pesquisa sobre a cerâmica etrusca. Mas muito rapidamente foram se desenvolvendo e expandindo seus territórios até conquistar Roma.

 Recipiente para perfume en alabastro, século VII A. C.

A presença dos tirrenos num mundo onde o denominador comum era o atraso, em comparação com a civilização grega, levantava algumas questões. A principal, e que inquietou várias gerações de historiadores, era: afinal, de onde vinham os etruscos? Foi Dionísio de Halicarnasso, histo-riador grego, quem mais se preocupou em averiguar as raízes daquele povo enigmático.

No século I a.C., ele escreveu Antiguidades romanas, no qual expu-nha as diferentes hipóteses que conhecia sobre a origem dos etruscos: umas apontavam para suas raízes orientais e outras, como a do historiador grego Heródoto, afirmavam que eles teriam vindo da Lídia, na Ásia Menor, e se misturado aos autóctones. Finalmente, Dionísio formula sua própria teo-ria: É possível que os que mais se aproximem da verdade sejam os que declaram que este povo não veio de lugar algum, é autóctone, pois é mui-to antigo e sua língua e forma de vida não coincide com nenhuma outra ci-vilização.
Estava lançada a polêmica: havia conjecturas para todos os gostos e estas foram engrossando com o correr dos séculos. Entre elas, a de que teriam vindo da Europa central, da região do Danúbio. A mais original, entretanto, fala de uma cultura etrusca, em vez de povo etrusco. Para os defensores dessa teoria, a mais aceita pelos etruscólogos hoje, a Etrúria não significa necessariamente uma nação, mas uma cultura comum, uma língua, uma religião. No entanto, vez ou outra trope-ça-se numa questão importante: o idioma. O número de textos é pequeno e nada se sabe sobre a origem da lín-gua, pois ela não é aparentada a ne-nhuma outra. Porém, dá para ler e identificar os verbos, os substantivos e os adjetivos, diz o professor Guarinello. Em seu livro Etruscologia, o historiador italiano Massimo Palottino revela que os sinais do alfabeto etrusco fo ram iden-tificados no século XVII e em princí-pios do século XIX foram comparados ao alfabeto grego e ao latino. Também é certo que durante o século VII a.C. os etruscos tinham ado-tado um alfabeto grego com 26 caracteres.


Lâmina de ouro com inscrições, museu Louvre-Lens, exposição outono/inverno 2013/2014

Mesmo sendo um povo de origens incertas, sua história é contada pelas necrópoles que deixaram. A Etrúria desenvolveu-se na Itália central, a oeste da Cordilheira dos Apeninos, basicamente onde hoje é a Toscana. Seu terri-tório se limitava ao norte pelo Rio Arno, a leste e sul pelo Rio Tibre e a oeste pelo Mar Tirreno, assim chamado porque era com esse no-me que se denominava os etruscos. O início do desenvolvimento de sua cultura singular, distinta da do restante de seus vizi-nhos da Península Itálica, remonta a meados do século VIII a.C. Depois da chegada dos gregos, as aldeias etruscas acabaram se transformando em cida-des, e tiveram como base a estrutura das cidades-Estado, como na Grécia.
Esse processo de urbanização das aldeias foi lento e demorado, mas alguns fatores favoreceram a expansão da cultura etrusca como a chegada à região de uma enorme quantidade de comerciantes vindos de além-mar, fa-cilitando o surgimento de um merca-do. Entre eles, estavam os sardos, atraídos pelo ferro da Ilha de Elba e os navegadores procedentes do Mar Egeu e das costas asiáticas: gregos principalmente. A princípio, eles criaram pequenos portos no sul da península e mais tarde formaram autênticas co-lônias, como a de Cumas, em 725 a.C., na Baía de Nápoles. O que os gregos queriam, na verdade, era estabelecer colônias ao norte, onde havia um mercado promissor, mas sabiam que seria difícil, pois a população local, formada por etruscos e latinos, era bastante numerosa para ser expulsa. Além disso, os povoados, sempre em lugares altos e próximos à costa eram fortemente defendidos.

Figura funeraria em bronze de um demônio com cabeça de cão, de 500 A. C.,
museu Louvre-Lens, exposição outono/inverno 2013/2014

A monarquia foi a primitiva forma de governo dessas cidades-Estado sendo mais tarde substituída por um governo oligárquico encabeçado por magistrados. Sabe-se pouco sobre as funções que eles exerciam, porém supõe-se que se o poder estava concentrado nas mãos da aristocracia, mais espe-cialmente no sul, isso se devia à agricultura. Já no norte, em cidades como Populonia, onde se fundia o ferro que vinha de Elba, é possível imaginar uma classe dominante de homens de negó-cios dedicados à manufatura e expor-tação. O restante se dividia em um grupo de homens livres, outro de escravos aqui entendidos como cidadãos de segunda classe, eram dependentes mas não propriedade dos mais ricos e colônias de residentes estrangeiros, gregos basicamente.
Nesse caso se incluía o coríntio Demarato, que viveu e fez fortuna na ci-dade de Tarquínia. Seu filho seria eleito rei de Roma, em 616 a.C., com o nome de Lúcio Tarquínio, ou Tarquínio, o Velho. É claro que o fenômeno da urbanização não se produziu de uma só vez. Segundo alguns registros históricos, Roma teria surgido em 753 a.C. essa é a data mais aceita, em-bora com ressalvas , e nessa mes-ma época os etruscos fundaram Veio, Cere, Tarquínia e Vulci. Depois, no final do mesmo século, seriam criadas Populonia, Vetulonia e, talvez Orvie-to. No século VII a.C. se consolida-riam Volterra e, possivelmente Cortona, enquanto Arezzo e Chiusi se constituiriam como cidades propriamente ditas na transição do século VII ao VI a.C. Foi exatamente essa a época de maior esplendor e máxima ex-pansão da civilização etrusca, quando também Roma se tornou etrusca. A essa altura, os tirrenos eram os senhores de boa parte da península, na área que se estendia da Campania, no sul, até o Vale do Pó, ao norte.

Dados de osso expostos na grande mostra sobre arte etrusca do museu Louvre-Lens, 2013/2014


Não se sabe ao certo como se deu esse processo expansionista. Sabe-se ter existido uma espécie de liga de doze cidades principais: Tarquínia, Cere, Veio, Vulci, Volsini e Vetulonia eram algumas delas. Tudo indica que se reuniam uma vez ao ano para celebrar um festival religioso. Porém, não se pode afirmar com segurança que tenham juntado seus recursos para fundar uma federação que servisse de base ao poder etrusco. É pouco provável também que sua organização naval e bélica tivesse tido em algum momento o respaldo adequado para manter com sucesso um império territorial diante de possíveis inimigos. Assim, depois de rápido florescimento no século VII a.C. e um breve e brilhante período de expansão imperialista durante o século VI a.C., seguiu-se uma série de insucessos iniciados com sua expulsão de Roma em 509 a.C. Com isso caíram as rotas de comunicação por terra entre a Etrúria e a Campania.
O poderio naval etrusco também sofreu um duríssimo golpe algum tempo depois, quando, em 474 a.C., seus navios, aliados com a frota cartagine--sa, enfrentaram os gregos condu-zidos por Hieron de Siracusa , e foram destroçados na batalha de Cu-mas. Mais adiante foram expulsos de Cápua e de outras cidades do sul. Até que finalmente, em 400 a.C., também perderam as cidades do norte para os gauleses. Ao mesmo tempo, os romanos marchavam sobre o centro da península, conquistando as cidades etruscas. No século V a.C., Veio foi destruída e no decorrer do século IV a.C., toda a Etrúria capitulou. Em 270 a.C., já era parte da federação romana.
Sem dúvida, surgia um novo mundo no qual a Etrúria tinha de se integrar, ainda que sacudida por rebeliões contra a nova ordem estabelecida. Se durante o século III a.C. Roma fundou colônias em pleno território etrusco, como Cosa ou Castro Novum, e lenta mas implacavelmente foi introduzindo a língua e os costumes romanos, o processo de romanização da Etrúria recebeu o golpe definitivo em 90 a.C., quando a Lei Júlia converteu em cidadãos romanos todos os itálicos. A partir de então se tornaria muito difícil e complicado separar o etrusco da história romana.


Fragmento de uma decoração arquitetônica etrusca em terracota: cabeça da divindade Leucótea, datada da segunda metade do século IV A.C.. Museu Louvre-Lens, exposição 2013/2014

 
Era o fim de um povo alegre e amante dos prazeres, que procurava a felicidade na vida cotidiana. Ao menos é a impressão que se tem ao examinar as pinturas das tumbas etruscas, especialmente as datadas dos séculos VIII a V a.C., que retratavam banquetes, jogos atléticos e homens pescando e mergulhando no mar. Daí em diante, as cenas são deprimentes, com representações do inferno povoado de demônios e de mulheres aladas com caras de animais, explica o professor Guarinel-lo. Essa impressão de felicidade du-rante o apogeu fez com que o escritor inglês D. H. Lawrence (1885-1930), autor do clássico O amante de Lady Chaterley, refletisse assim sobre os etruscos: Não se pode bailar alegremente ao som da flauta e ao mesmo tempo conquistar nações e ganhar grandes somas de dinheiro. Es-sa descrição, porém, não é totalmente correta.
Na realidade, os etruscos foram bons administradores e eficientes homens de negócios, capazes de fabricar produtos de alto nível técnico, embora talvez não reunissem as condições necessárias para se manter no poder. Seja como for, o certo é que, além do ferro, algumas cidades manufaturavam objetos de bronze, tradição que veio do Oriente. Nelas também se plantava trigo e se produziam vinho e azeite de oliva, coisas que aprenderam com os gregos. Além disso, tinham grande produção artesanal de barcos, cordas, velame para navios, e cerâmica. Eles sempre foram grandes ceramistas e produziam uma cerâmica negra, semelhante à porcelana chinesa. Até hoje não se descobriu a técnica que eles usavam, lembra o arqueólogo Guarinello.
Os etruscos foram também notáveis construtores de cidades. Marzabotto, pequena vila próxima a Bolonha, na atual região da Emilia-Romagna, tinha uma ampla rua principal cruzada por várias vias secundárias que se estendiam em quadras, esquema que foi mais tarde copiado pelos romanos. Porém, se as características urbanísticas desenvolvidas pelos vivos é admirável, o universo de pedra que criaram para os mortos é surpreendente. Os cemitérios etruscos chegavam, em algumas ocasiões, a configurar-se como autênticas cidades, a ponto de o escritor italiano Curzio Malaparte (1898-1957) afir-- mar: As verdadeiras cidades dos etruscos são as necrópoles. As cida-des dos vivos não eram senão subúr--bios das dos mortos.
Tudo isso revela uma grande preocupação pela vida além da morte e obviamente a existência de ritos fúnebres complexos. De fato, quando morria um personagem notável, seu corpo era exposto em algum lugar da necróple durante vários dias, aguardando a chegada de amigos e deuses que vinham de seus lugares de origem. Mais tarde havia uma procissão (ekphora) até a pira e dali à tumba uma casa subterrânea com salas, quartos e cama onde se depositavam as urnas funerárias. Os mortos eram sepultados com todos os seus objetos pessoais, incluindo roupas, jóias e armas.
No interior da Etrúria, a regra era a cremação, enquanto na zona costeira meridional se enterravam os defun-tos. A parte mais vistosa do ritual, que aparece freqüentemente em pinturas e relevos, vinha depois de se deixar o morto ou suas cinzas na tumba. Celebrava-se então um grande banquete, do qual só participavam alguns convidados. Seu significado era re-cordar a constante renovação da natureza e a prolongação da vida depois da morte. Concluída a comilança, os convidados as-sistiam a provas atléticas, corridas de cavalos e combates de homens contra cães que, provavelmente, deram origem às lutas de gladiadores.
Estes jogos fúnebres tinham um toque macabro, co-mo mostram as pinturas: homens com a cabeça coberta por um saco carregando uma clava numa das mãos e na outra um cão selvagem preso por uma coleira. Talvez por isso é que o escritor latino Arnóbio (século IV) tenha classificado a Etrúria como princípio e mãe de todas as superstições. Para o historiador Tito Lívio (59/64 a.C.-17 d.C.), ao contrário, o povo etrusco seria uma raça superior a todas as demais, consagrada a crenças e cerimônias religiosas.
Mas o que distinguiu a cultura etrusca das outras foi um conjunto de crenças e rituais que recebeu o nome de disci-plina etrusca. Trata-va-se de uma concepção religiosa da natureza e do mundo na qual todos os entes naturais contêm a manifestação da vontade divina. Para eles, os desígnios divinos se manifestavam por meio da natureza, bastando observá-la atentamente e interpretá-la para conhecer o futuro e as formas de modificá-lo. Os intérpretes da vontade dos deuses eram os arúspices e os princípios da chamada aruspicina a arte de adivinhar a partir da análise minuciosa do fígado dos animais oferecidos aos deuses, e da leitura dos raios e trovões vinham de uma revelação do deus Tages. Ele teria surgido de um sulco no campo traçado por um lavrador etrusco, com a cara de um menino e a prudência de um ancião.
Segundo a lenda, relatada pelo escri-tor latino Marco Túlio Cícero (106 a.C.- 43 a.C.), Tages reuniu toda a Etrúria em um determinado lugar e pronunciou um discurso que serviu de base para a ciência praticada pelos arúspices. Muito depois da decadência da nação etrusca, seus arúspices ainda fa-ziam parte do séquito dos generais e imperadores romanos, e seguiriam influenciando as instituições de Roma e o curso de sua história. Mais um elemento que se somou a outros fortalecendo as raízes etruscas que sobreviveram entre os romanos.

Possíveis sobreviventes

O que restou dos etruscos além de esculturas, pinturas, inscrições e tumbas? Quem sabe, descendentes. Eles podem ser os 2 000 habitantes da pequena Murlo, na província de Siena. Ao menos é a hipótese levantada pela equipe do professor Alberto Piazza, diretor do departamento de Genética da Universidade de Turim, Itália. Para começar, os cientistas recolheram amostras de sangue de 150 murlenses a fim de estabelecer por meio do exame do DNA molécula que determina as características das pessoas se seu patrimônio genético é igual ou parecido com os dos antigos habitantes da Toscana.
O Projeto Murlo nasceu depois que os pesquisadores liderados por Piazza concluíram uma detalhada análise dos marcadores genéticos dos povos itálicos: grupo sanguíneo, dados antropométricos como altura, cor dos olhos e da pele. A análise desses fatores permitiu mapear detalhadamente os povos que se estabeleceram na Península Itálica na época pré-romana, divididos em três grupos principais: celta-ligúrios ao norte, etruscos no centro e gregos no sul. Esses dados, no entanto, são insuficientes para saber se há uma continuidade biológica entre os etruscos e um determinado grupo de homens de hoje.
A resposta mais segura pode ser dada comparando-se o DNA dos murlenses com o DNA dos ossos que se encontram nas necróples etruscas que rodeiam Murlo. A escolha dos murlenses para a experiência se explica: o local foi bastante preservado ao longo dos séculos, não foi invadido nem destruído e por isso, provavelmente, não sofreu misturas étnicas que caracterizaram outras po-pulações. Ainda não escolhemos as técnicas para extrair o DNA dos ossos, explica o professor Piazza. A dificuldade é que eles estão contaminados por diversos tipos de materiais, devido à manipulação por parte dos arqueólogos. Outra pista curiosa é a sugestão de uma equipe de glotólogos estudiosos da linguagem de que os etruscos deviam aspirar o C (pronunciando hasa em vez de casa) como se faz em algumas áreas da Toscana. A pesquisa mal começou e por isso ainda vai demorar um tempo para sabermos se, de fato, os etruscos deixaram herdeiros.
 
Um berço da emancipação feminina

Mesmo nas mais avançadas sociedades da Antigüidade ocidental, as mulheres sempre ocuparam papel secundário, reduzidas à sombra dos maridos. Na Grécia, por exemplo, encerravam-se no mundo doméstico e em Roma sofriam inúmeras restrições. Na Etrúria havia maior consideração pelas representantes do sexo feminino, em relação a outras culturas do mundo antigo e, por isso, os etruscos não eram vistos com bons olhos. Para se ter uma idéia do que os romanos pensavam sobre as mulheres etruscas basta ler um fragmento de um escrito do dramaturgo latino Plauto (284-187 a.C.): Receberás de teu pai vinte mil talentos, para que não tenhas que ganhar um dote à moda etrusca, prostituindo vergonhosamente teu corpo.
Toda essa violência verbal se deve ao fato de que a etrusca vivia menos enclausurada, sentava-se ao lado do marido nos banquetes e trocava carinhos com ele, em vez de se retirar das reuniões, como acontecia entre os gregos. Ela também assistia aos jogos e espetáculos misturando-se com os homens e não perdia seu sobrenome nem seu nome ao se casar como era costume em Roma. Isso fazia parte de seus direitos. Havia casos em que, em suas tumbas, escreviam-se os nomes do pai e da mãe.

Obtido de: http://super.abril.com.br/superarquivo/1993/conteudo_113887.shtml

 

Os enigmáticos etruscos

Helen Thompson

Pouco se sabe sobre esses antigos toscanos, que deixaram um rico legado cultural. Descobertas recentes trouxeram novas informações, mas não a ponto de identificar sua origem ou de decifrar totalmente sua escrita

Os etruscos têm muitos atributos: dominavam a arte de decorar tumbas e tinham escrita.Durante séculos, a civilização que criaram foi comparada à egípcia. Depois, um manto de fantasia recaiu sobre ela: teria sido anterior e, definitivamente, precursora da grega. Hoje, apesar de indicações relacionadas a uma parte da mitologia e do alfabeto aparentemente comum entre os povos; a tal primazia etrusca sobre a esplendorosa Grécia antiga já não é mais tão aceita, mas há muitos mistérios para a ciência resolver antes de um veredicto final.

Numerosas descobertas recentes, em especial na Etrúria, região central da península Itálica, mas também fora dela, fizeram avançar os conhecimentos sobre esses antigos toscanos. A Etrúria nunca formou uma só nação, com um poder centralizado.

Não se deve compará-la ao Império Romano nem ao Estado moderno. Aqui começa a identidade com os gregos: tratava-se de um conglomerado de cidades autônomas, com territórios e capitais definidos.

Os autores antigos – gregos e romanos – diziam unanimemente que os etruscos formavam uma liga de 12 cidades, a dodecápolis, mas jamais mencionaram a lista inteira de localidades. A arqueologia e as fontes literárias indicaram que, no apogeu dessa civilização (século VI a.C.), havia as cidades de Tarquínia e Veio, consideradas as mais brilhantes e opulentas.

Alguns séculos depois, há registros das capitais de Arezzo, Cortona, Perugia e Volsini (atual Orvieto). Características das necrópoles e riquezas de mobiliário funerários, além do número e das dimensões de templos, levaram a incluir na dodecápolis cidades como Cere (hoje Cerveteri), Vulci, Vetulonia, Volterra e Chiusi. Por essa conta, ainda falta uma.

As escavações realizadas há alguns anos em Pisa trouxeram à luz o rico passado etrusco desse porto fluvial, e a localidade passou a ser candidata séria ao posto. Mas um grande porto como Populonia, capital do ferro etrusco, podia facilmente entrar na liga, sem esquecer uma cidade como Rosella e outras. Como se pode notar, o problema é o excesso, e não a falta de candidatas.  

 Cabeças votivas em terracota, autor desconhecido século VI ou V a.C.


Essa liga de 12 cidades não foi nada eficaz nos planos político e militar. Isso fica evidente no fracasso dos pedidos de socorro de Veio, quando atacada por Roma no século V a.C.: a desunião facilitou enormemente a conquista romana da Etrúria. A fragilidade na união militar não impediu um forte elo religioso entre os etruscos de todas as regiões, simbolizado por um sacerdos, um grande sacerdote que presidia as cerimônias anuais no principal templo do deus supremo desse povo, Voltumna (ou Veltha). Seu santuário ainda não foi localizado, mas pode se encontrar perto do rochedo de Orvieto. Escavações atuais podem trazer à luz esse sítio, às vezes comparado em importância ao de Delfos na Antiguidade.

Um dos traços desse povo é a beleza artística e o grande número de afrescos funerários. Ao contrário dos gregos, cujas obras das épocas arcaica e clássica desapareceram, os etruscos tiveram a feliz ideia de decorar seus hipogeus, que são tumbas subterrâneas. Essa condição protegeu a arte, hoje exposta em condições especiais na Tarquínia, por exemplo, no museu ou no próprio sítio arqueológico da antiga necrópole de Monterozzi.

Em 1985, também na Tarquínia, foi descoberta uma nova sepultura decorada, chamada “tumba dos demônios azuis” em razão da presença, em suas paredes, dedivindades infernais com a pele pintada de azul. Uma parte dos motivos mostra o barqueiro grego, que atravessa os infernos, e o equivalente a Caronte, em seu barco; ou uma morta, que vai partir em uma viagem marítima, acolhida por seus parentes falecidos.

 Tumba dos demônios azuis, Necrópole dos Monterozzi, Tarquínia

Afresco, autor desconhecido, 330-320 a.C.

 Por falta de textos etruscos, as interpretações devem parar por aqui. Note-se, contudo, que essa tumba é do fim do século V a.C., e os demônios que acompanhavam os mortos não apareciam na iconografia antes da época helenística. A presença deles parece ser mais antiga do que se imaginava.

No território de Chiusi, uma das cidades da dodecápolis, a oeste do lago Trasimeno, há uma necrópole na bela cidade toscana de Sarteano. Ali se encontrou, em 2003, a tumba da quadriga infernal – carro conduzido por quatro animais. Penetrando no túmulo, é possível ver o desenho da carruagem atrelada a dois leões e dois hipogrifos (animal mitológico representado com corpo de leão, asas, garras e cabeça de águia). Os animais são conduzidos por um cocheiro de cabelos ruivos e olhos que saem das órbitas, cujo rosto foi recortado sobre uma nuvem negra evocando o mundo dos infernos. A arqueóloga Alessandra Minetti, descobridora da tumba, estima que se trate de um novo avatar de Caronte. 

Tumba da Quadriga Infernal, Sarteano

 O carro conduzido por dois leões e dois hipogrifos é chamado de "quadriga infernal". O cocheiro seria um novo avatar de Caronte, o barqueiro

Em 2006, a cidade mais próxima de Roma, Veio, revelou a tumba pintada que é a mais antiga até hoje conhecida na Etrúria.

Batizada de “tumba dos leões rugidores”, em razão da presença de quatro leões com bocas impressionantes, remonta ao começo do século VII a.C. Há uma série de pássaros pintados em vermelho e preto, com a mesma técnica usada na cerâmica geométrica grega tardia. Segundo Francesca Boitani, diretora do museu de Villa Giulia, em Roma, os aterradores leões evocam a morte, e as aves, a viagem aos infernos.


Também não se podem desprezar os resultados das escavações realizadas em Verucchio, perto de Rimini. No sítio, ligado à Rota do Âmbar, tumbas principescas revelaram um rico e conservado mobiliário de madeira, com alguns tronos. Em Casale Marittimo, perto de Volterra, estátuas de pedra do começo do século VII a.C. foram desenterradas, uma produção artística pouco comum na Etrúria até aquela época.

As escavações nas casas dos vivos se tornou hoje prioritária nas grandes cidades como Marsiliana d’Albegna e, principalmente, na Tarquínia, cidade cujas origens remontam ao século IX a.C. Além disso, um novo templo dedicado a Tin, outro importante deus etrusco, foi descoberto em Marzabotto, nas imediações de Bolonha. Lá se decifrou a inscrição Kainua, que deve ser o nome etrusco da cidade, algo até então ignorado.

A arqueologia submarina também trouxe seu quinhão de revelações, pois a exploração de navios naufragados é fundamental para a história econômica e o conhecimento das trocas comerciais. Em 1999, pesquisadores identificaram um navio afundado ao largo da cidade de Hyères, no sul da França. A embarcação era um grande cargueiro e transportava, perto do ano 500 a.C., mil ânforas cheias de vinho produzido na região de Cere-Cerveteri. Sem dúvida, a carga seria entregue no porto de Lattes, próximo da atual Montpellier, já que a Gália meridional consumia vinho etrusco havia mais de um século.

Talvez fosse um navio etrusco implicado em uma forma de comércio direto entre a Etrúria e a Gália meridional, mas tratava-se de modo pouco habitual para o período, pois mais comum era o sistema de cabotagem – de porto em porto, com cargas e descargas frequentes, ao longo da costa do Mediterrâneo. 

ORIGENS
Quanto às raízes dos etruscos, o mistério é enorme. Teriam eles vindo da Ásia Menor, como afirmou o historiador grego Heródoto (século V a.C.) ou seriam nativos do lugar, um povo autóctone, segundo a tese defendida pelo também historiador grego Dionísio (ou Denis) de Halicarnasso, posteriormente, no século I a.C.?

Heródoto afirmou que os etruscos eram originários da Lídia, na atual Turquia. Teriam chegado à Itália no século XIII a.C. A hipótese é compatível com a que associa os etruscos aos povos do mar. Os egípcios mencio navam os etruscos com o nome de turshu. Os latinos, os chamavam de tusci. Os gregos, de tyrrhenioi.

O mais provável é que tenham se instalado na região, que já possuía uma população local, entre os séculos VIII e VII a.C., atraídos pelas jazidas metálicas da Toscana. Eles fundaram ou controlaram Bolonha, Mântua, Pesaro, Rimini, Cápua, Pompeia e até mesmo Roma, cujos três últimos reis antes da República, entre 616 e 509 a.C.,
foram etruscos.

Talvez a análise do DNA das populações da Toscana traga luzes sobre essa eterna questão. Os primeiros resultados pendem para uma origem oriental. Mas não é de desprezar o comentário do historiador francês Jules Martha, em 1889: “Podemos nos perguntar se o termo ‘etruscos’ corresponde a uma entidade etnográfica bem definida ou se, por acaso, não seria uma expressão política que designaria um povo misto, resultado da mistura de várias raças, como, por exemplo, os franceses, austríacos, ingleses, americanos”.  

Nem grego nem latim

Em relação à língua etrusca, há muito a ser descoberto, embora os poucos textos sejam hoje decifrados com mais facilidade – ao menos quando colocados em seu contexto. Geralmente as palavras são grafadas da direita para a esquerda, com um alfabeto assemelhado ao grego. Mas o etrusco definitivamente não pertence ao grupo de línguas indo-europeias, mesmo que tome de empréstimo elementos do grego e das línguas itálicas.

Simplesmente não se pode aproximar o etrusco de outra língua. Por isso, uma escritura descoberta em 1992, em Cortona, na Itália, tem grande interesse. Surgida em condições rocambolescas e certamente depois de escavações clandestinas, a tabuleta de Cortona é uma placa de bronze de aproximadamente 45 cm por 30 cm, com inscrições que cobrem totalmente uma face e a parte superior do verso. Deve datar de cerca de 200 a.C.

Com 206 palavras, mais da metade nomes próprios e sinais de pontuação, a tabuleta contém o terceiro texto etrusco conhecido em número de linhas. Como faltam escritos longos, com um vocabulário rico que permita avanços no conhecimento do etrusco, a descoberta é das mais celebradas.

Tudo indica tratar-se de um documento jurídico, um contrato sobre a venda de terras, onde existiam uma vinha e um olival situado perto do lago Trasimeno. Daí as listas de nomes próprios que provavelmente representam os vendedores, os compradores, as testemunhas e os fiadores daquela transação.

Museu Dell´Accademia Etrusca, Cortona
Tabuleta de Cortona revela a escrita etrusca. A inscrição de autor desconhecido, foi feita sobre bronze por volta de 200 a.C.
Aparece ainda na inscrição a expressão cen zic zichuche, que se traduz por “este texto foi escrito”, uma fórmula esperada em atas de tipo notarial. Há a qualidade de um magistrado que é zilath mechl rasnal, que significa “pretor da liga etrusca”, ou como alguns hoje acreditam, pretor da cidade de Cortona – talvez o prefeito da cidade. Constata-se que, como na Roma dos cônsules, a datação é indicada pelo nome de dois magistrados que estavam no cargo naquele ano.

A tradução hoje aceita dessas e de outras passagens está longe de indicar que o problema da língua esteja resolvido. Alguns especialistas de peso contestam a interpretação e veem na tabuleta de Cortona um texto religioso, que descreveria os ritos praticados por uma confraria. Uma hipótese errada para a maioria dos pesquisadores, mas...

Obtido de: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/os_enigmaticos_etruscos.html